17 maio 2016

Luta, liberdade, vida

Ana Maria, vulgo Dora: encontrada VIVA
Joana Côrtes, no Facebook

A força dela é pela manhã. Vem com o orvalho que deixa os manjericões úmidos no nosso quintal. O que dizer a essa mulher que faz 71 anos esta semana? O que dizer à mulher que traz tantas outras em si e que sentará na quinta-feira, 19 de maio, logo cedo, às 8 da matina, no palco do auditório do Museu da Gente Sergipana, em Aracaju, para contar a outras mulheres e à Comissão da Verdade de Sergipe o que viveu nos tempos de chumbo, pólvora ainda nos olhos, hoje, esse tempo?
Dizer que a força dela é quando o galo cocorocô e que ela guarda mulheres bonitas e devastadas e insolentes, todas do Agreste, de Aracaju, do ABC paulista, da zona da mata pernambucana e do Recife, e de todos os caminhos por onde passou. Que já foi Ana Maria até os 23, e depois Dora ou talvez Sônia ou Maria – nos tempos de clandestinidade durante a ditadura, a de 1964. E que não tinha como não fazer um lambe de divulgação sobre o seu depoimento a ser concedido, com essa imagem da fotografia em três por quatro da carteira de identidade expedida em dezembro de 1974, quando aos 29 anos, grávida de seis meses do primeiro filho, voltava a existir oficialmente, a ter um erre gê, depois de cinco anos de clandestinidade e de quatro meses de prisão e torturas, entre junho e outubro do mesmo ano. 
A foto tem esse sentido e essa força das manhãs: ali ela está encontrada VIVA. 
Dali por diante ela seria a militante e assistente social Ana Côrtes. Haveria mais cinco anos pela frente, de visitas ao companheiro preso em Itamaracá, ao nascimento do segundo filho, de luta por Anistia Ampla Geral e Irrestrita. Em 1980, essa mulher virou minha mãe. Desde lá, os meus olhos são dela. 
Sei que é preciso um esforço magistral para lembrar. Para ela, sensibilíssima a toda e qualquer natureza, mais ainda. Então eu preciso dizer que é sempre uma morte lentíssima, a ressurreição (dessas coisas que ando aprendendo nos últimos tempos com a poesia da Júlia Hansen). Mexer, revirar-se, cavar cavar cavar, dói. Faz como para se blindar da vida? Se blindar não dá, é preciso limpeza corriqueira, febre curativa, insônia produtiva. Tomar do seu próprio tempo, contar, falar, é um modo de se limpar, e de se elaborar.
Têm os medos, e as angústias, e os receios, e as dores, e as feridas. E tem a saliva, pra lamber tudo e curar, aos poucos.
Respeitar a delicada ecologia dos próprios delírios. Compreender que se contradiz, porque é vasta. E que há segredos e segredos, mistérios e mistérios, mantê-los em silêncio ou externá-los, compartilhá-los, é direito de cada um.
Quem é e de onde vem essa mulher? Que histórias iguais a tantas outras mulheres que participam da história de luta contra violações aos direitos humanos no país ela tem para contar? 
Sem Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, sem Ministério da Cultura, sem mulheres nos Ministérios, com um suposto ministro da Justiça que fez carreira mandado bala de borracha e a Choque para reprimir estudantes, não há momento melhor para descobrir as nossas outras histórias dessas mulheres brasileiras, nordestinas, sergipanas. 
Estaremos lá, juntas, para ouvir essa mulher encontrada VIVA. Queremos conhecê-la cada vez mais.
A arte do lambe é da órbita estelar do olho veneno lamparina do meu mano Raphael Borges.

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