Cuba anuncia pacote de reformas para garantir crescimento com desenvolvimento social
Com uma economia marcada por queda de 11% na atividade nos últimos cinco anos e pressões externas históricas, Cuba aposta em reformas estruturais, investimentos em energias renováveis e ajustes cambiais
Cezar Xavier/Vermelho
Cuba enfrenta uma das fases mais desafiadoras de sua economia nas últimas décadas. A retração acumulada de 11% do PIB desde 2020 expôs vulnerabilidades estruturais que se somam às já crônicas dificuldades impostas pelo bloqueio econômico dos Estados Unidos. O ministro da Economia, Joaquín Alonso Vázquez, tem reiterado que o desafio cubano não é apenas resistir à crise, mas também inovar — com criatividade, disciplina fiscal e justiça social.
Essa estratégia de “resiliência socialista” orienta o novo Programa de Governo, apresentado pelo primeiro-ministro Manuel Marrero Cruz na Assembleia Nacional. O plano consolida diretrizes para corrigir distorções macroeconômicas, atrair investimentos e recuperar o crescimento, sem desmontar o pacto social que sustenta o regime desde a Revolução.
O Programa avança numa linha pragmática e coerente: equilibra dívida e inflação com abertura controlada, combate privilégios, reativa a economia camponesa e busca parcerias estrangeiras — enquanto preserva um forte papel do Estado. O próximo teste será sua execução firme e a capacidade de manter coesão política em meio a ajustes estruturais.
Reformas estruturais: Crescimento com justiça social
Apesar da recessão, Cuba reafirma sua aposta em um modelo de desenvolvimento com equidade. A política de estabilização econômica iniciada em 2023 surtiu efeitos visíveis: o país reverteu o déficit fiscal projetado e registrou superávit de 27,9 bilhões de pesos no primeiro quadrimestre de 2025. A arrecadação cresceu 6%, fruto da maior formalização e do combate à inadimplência.
Contudo, a inflação ainda pressiona os lares cubanos. A taxa estimada de 14,8% permanece elevada, embora abaixo das projeções mais alarmantes. Para proteger os grupos vulneráveis dos impactos dos ajustes, o governo preserva subsídios essenciais e amplia o alcance da proteção social, com reajuste de pensões e políticas de transferência de renda.
Dolarização parcial e câmbio dual: O nó da produtividade
Um dos pontos mais sensíveis é a coexistência de múltiplas taxas de câmbio — um mercado oficial rígido e um paralelo altamente especulativo. A dolarização parcial, implementada para atrair divisas e evitar fuga de capitais, gerou distorções e desigualdade entre os setores estatal e não estatal. Para reverter esse quadro, foi anunciada a criação de um mercado cambial regulado acessível a empresas produtivas.
Embora inevitável, essa transição exige cuidado. Especialistas alertam que uma liberalização cambial sem salvaguardas pode desestruturar os preços relativos e comprometer a segurança alimentar — em um país onde 60 mil agricultores familiares respondem por boa parte da produção de alimentos.
Energia renovável: Aposta estratégica contra a escassez
A matriz energética também passa por reformas estruturais. Diante da escassez de combustíveis fósseis e da obsolescência de usinas térmicas, Cuba acelera o investimento em energia solar. Até 2025, a meta é atingir 2.000 MW de capacidade instalada — com 590 MW já operacionais.
Além de aliviar a pressão sobre importações, o investimento em renováveis abre espaço fiscal, reduz o déficit externo e contribui para a sustentabilidade ambiental. Porém, o bloqueio americano dificulta a aquisição de tecnologias e insumos básicos, atrasando cronogramas e elevando custos.
Investimento estrangeiro sob nova lógica: Diversificar com soberania
A reorientação econômica cubana também inclui uma nova abordagem para o investimento externo. Em vez de priorizar o turismo — setor afetado por sanções e pelo declínio na emissão de vistos a europeus — o foco agora recai sobre áreas estratégicas como infraestrutura, telecomunicações e agronegócio.
Com incentivos diferenciados, o governo busca capital para diversificar a matriz produtiva e ampliar as exportações. A criação de empresas mistas, a formalização de parcerias entre estatais e não estatais e o fortalecimento da conectividade digital refletem essa nova fase.
Desenvolvimento territorial: Produzir no local, crescer no coletivo
A retomada do crescimento também passa pelos territórios. Mais de 2.200 projetos locais foram aprovados com apoio da Contribuição Territorial para o Desenvolvimento Local (CTDL), fortalecendo a capacidade de resposta dos municípios. O objetivo é ampliar a autonomia regional e evitar que soluções para problemas locais dependam exclusivamente da burocracia central.
A articulação entre governos locais, empresas estatais, cooperativas e MPMEs (micro, pequenas e médias empresas) é vista como chave para destravar cadeias produtivas e gerar emprego com impacto comunitário.
Desigualdade e eficiência: O dilema da reforma com redistribuição
Ao mesmo tempo em que promove ajustes fiscais e monetários, o governo mantém firme o compromisso com o bem-estar coletivo. Os dados oficiais apontam que quase 1,3 milhão de cubanos foram beneficiados por revisões previdenciárias, e novas políticas antidiscriminatórias buscam garantir equidade social e respeito à diversidade.
A revisão salarial no setor público e a avaliação por desempenho são tentativas de modernizar a máquina estatal, sem recorrer à precarização dos vínculos laborais. Ainda assim, o risco de desalento e migração qualificada continua alto.
O desafio de modernizar sem ceder aos paradigmas do mercado
O novo ciclo de reformas em Cuba representa uma tentativa complexa de recuperar o crescimento com soberania, em um ambiente internacional adverso e sob o peso histórico do bloqueio econômico. A combinação entre ajuste fiscal, inovação produtiva e proteção social aponta para um caminho de renovação do socialismo — mais pragmático, mas não menos comprometido com a equidade.
A efetividade dessas medidas dependerá de três fatores centrais:
- A capacidade de manter coesão política frente às dificuldades.
- A rapidez na implementação e no destravamento regulatório.
- O sucesso em conectar metas macroeconômicas com transformações concretas na vida cotidiana.
Como sintetizou o primeiro-ministro Marrero: “o desafio não é apenas resistir, mas resistir criando”. Nesse sentido, Cuba mais uma vez testa os limites da adversidade com a resiliência que moldou sua história — apostando que desenvolvimento e justiça social podem andar juntos, mesmo em tempos de escassez.
As medidas anunciadas têm cronograma e metas claras: de câmbio flexível e teleprocessos ao fortalecimento das empresas estatais e não estatais, passando por transformações sociais e consolidação energética. Se implementadas consistentemente, podem garantir crescimento econômico, reformas estruturais e avanços sociais — mesmo sob o peso de restrições orçamentárias e bloqueios externos. A efetividade dependerá do grau de comprometimento político e de sua tração local, além da capacidade de combinar modernização e justiça social em um modelo híbrido de desenvolvimento.
Foto: José Manuel Correa/Granma
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Por dentro da Saúde cubana, muito além das vacinas https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/05/sistema-de-saude-cubano.html
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