30 dezembro 2019

Crônica de Ano Novo


Questão de perspectiva
Luciano Siqueira


Era o grupo "de sempre", se é que o termo ainda se aplica ao grupo, pois já fazia meses que não sentavam à mesa do bar para jogar conversa fora.

Mas aquele reencontro era especial, uma espécie de saideira de 2019 e de bons agouros para 2020.

O Moreira havia levado uma boa cachaça de São José de Mipibu (RN) e depois
da terceira rodada, a turma já animada, começaram os intermináveis brindes com chope. Para lavar.

Aí o Gouveia, assessor de imprensa de uma empresa estatal do município, introduziu a pergunta:

— Respondam todos, qual o seu principal desejo para 2020?

Dois disseram de pronto que gostariam de ver o Bolsonaro transferido para o Inferno. Um pediu que o Santa Cruz ganhasse o campeonato pernambucano. E os demais (eram sete no grupo) se dispersaram em questões estritamente pessoais.

— Não nego — falou emocionado o Belarmino —, queria mesmo era a volta da Marineide, referindo-se a ex-esposa que um dia cansara de suas farras fenomenais e batera em retirada.

O Epaminondas, então, sempre ele, resolveu baixar o nível das pretensões e sapecou:

— Para mim basta que jamais uma mosca caia na minha tulipa de chope!

Meio que recolhido a posição de mero observador, neutro e atento, preferi não participar do certame e me pus a refletir sobre aquela manifestação de desejos movida a oxidrilas.

— Uma questão de perspectiva, pensei comigo mesmo. Dos rumos da nação a questiúnculas domésticas, em confidências de mesa do bar tudo vale a pena quando a sinceridade não é pequena.

É assim se dá entre os mais de duzentos milhões de brasileiras e brasileiros, submetidos a tremenda crise econômica, que lhes cria quase insuportáveis condições de sobrevivência — pelo menos para a maioria.

Quando um povo perde a perspectiva tudo fica mais difícil, sobretudo numa situação como a atual em que a dita correlação de forças no terreno da política segue desfavorável ao campo popular e democrático.

Estivesse entre aqueles sete amigos, a confraternizar com cachaça e chope, algum dirigente partidário da estirpe de um Lula ou de um Ciro Gomes, eu teria dito:

— Ouçam o governador maranhense Flavio Dino, do PCdoB, que defende uma ampla união das oposições para que o Brasil possa se livrar da praga bolsonarista!

Isto posto, segui mais uma rodada de chope apoiada numa excelente dobradinha.

E que venha um 2020 de muita luta e novas conquistas!
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Feliz Ano Novo

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29 dezembro 2019

Retrocesso

Em 2019, o orçamento do Mistério da Educação previa R$ 122 bilhões. Em 2020 cai para 102 bilhões, 20% a menos. Retrocesso explícito.

No palco

É no Teatro Santa Isabel, no palco (onde Castro Alves um dia recitou “Ode a Pedro Ivo) —, o “ator” sou eu, mas é apenas um breve discurso para alunos concluintes do ProJovem Urbano.

28 dezembro 2019

A cobra morde

Pesquisas comprovam que Bolsonaro é o mais frágil presidente da República em primeiro ano de mandato quanto a  apoio popular. Mas sua equipe segue célere no cumprimento da agenda ultraliberal e ainda conta com maioria parlamentar para tanto. Ampliar a resistência é necessário.

A gente se vê no Instagram

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27 dezembro 2019

Violência

Em 2019, foram registrados 5 armas por hora no Brasil. É o que Bolsonaro chama de “armamentismo” como forma de defesa do cidadão comum contra o crime. Na verdade, é o império da violência e o paraíso da indústria de armas.

Olhando o mar

Bolsonaro passará o Ano Novo na Base Naval de Aratu. Com toda proteção para não naufragar no próprio mar de contradições.

Basco furado

‘Em seu pior ano, Lava Jato tem reveses em série no STF e julgamentos estagnados’, diz a Folha [Isto desde que Moro, Dellagnol e comparsas foram desmascarados pelas revelações do The Intercept]

26 dezembro 2019

Desigualdade

Catar, Brasil e Chile dividem o pódio mundial de concentração de renda. Alguém se orgulha disso?

Desencontro

Bolsonaro sanciona o chamado “pacote anti-crime” (sic) rejeitando boa parte das propostas do ministro Sérgio Moro. Falta unidade na pirotecnia do Planalto.

25 dezembro 2019

Uma crônica do cotidiano


Vidas quase cruzadas
Luciano Siqueira

Dela soubemos apenas que nasceu em Fortaleza, mudou-se para o Rio de Janeiro onde viveu a infância, a adolescência e o começo da juventude, e alterou períodos fora do país – não disse onde – com retornos intermitentes à terra natal. O sotaque carioca conserva. E o gosto por peças e símbolos orientais, que mistura com motivos nordestinos na decoração da pousada. Tem um cantinho meio esquisito, uma pequena edificação em taipa, onde se encontra um tosco altar para os que desejarem fazer suas preces.
– Religião não tenho, mas sou adepta da filosofia budista, explica.
De suas andanças e vivências, exibe no corpo tatuagens que quem olha não entende, carece de esclarecimento. Sim, tem também o marido, que usa óculos escuros, meio obeso e fala ao jeito gaúcho.
Ao café da manhã, demonstra intimidade com quatro hóspedes mulheres que lhe relembram a conversa da noite anterior:
- Que história têm vocês, heim? Nós também temos nossas histórias, hoje a gente continua daquele ponto: quando e como tudo começou.
Trocam risadas e resmungos, como se segredos estivessem a revelar. Na promessa de detalhes, feita pela branquela, um quê de cumplicidade. São dois casais homoafetivos.
Fazíamos nossos pratos: abacaxi, melão, mamão papaia, tapioca, ovos fritos, queijo manteiga, presunto. Suco de acerola. Café forte. Não éramos parte do pequeno grupo que se formara em torno da mesa larga. Nossas intimidades não interessavam, certamente nada tinham a nos contar numa manhã de sol esquentado, naquele mormaço debaixo da grande caiçara. Não tínhamos compartilhado com elas, na noite anterior, coisas vividas, sonhadas, sofridas e comemoradas.
Ficamos à mesa na quina, mais distante, já não ouvíamos a conversa, nem ouviam o que dizíamos.
Entre peças artesanais nordestinas e abajus e estatuetas budistas, espalhados pelos ambientes da pousada, livros e revistas em diversas línguas e uma coleção quase completa de Bravo! A capa sobre os cinquenta anos de Grande Sertão: Veredas deu o mote para breve troca de impressões sobre o gosto comum pela boa leitura. Nada mais que isso.
Dia seguinte seguimos viagem pelo litoral cearense, deixando a saudação habitual de um bom dia, um abraço fraterno, a paga pelos dois dias ali vividos e a leve frustração, nossa, não sabemos se dela também, por não havermos entrado na roda e compartilhado coisas da vida, de nossas vidas. Nossos destinos por estradas distintas, em paralelo, talvez mais: bifurcados, faltos daquela oportunidade de entrosamento, vidas que não se cruzaram. Por um pouquinho de nada.
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Amplitude e pluralidade


Flávio Dino defende aliança ampla para enfrentar Bolsonaro
O governador do Maranhão afirma que o bolsonarismo não veio para ficar no Brasil, é “chuva de verão”. Para Dino é preciso unir amplas forças em torno de um programa mínimo para a disputa eleitoral de 2020.
Portal Vermelho

Mesmo citado como nome capaz superar os antagonismos e conflitos intestinos no campo progressista, Flávio Dino desconversa e diz que ainda é cedo para pensar em 2022. “Não tenho falado disso nem publicamente nem em privado”, afirmou em entrevista à revista Carta Capital. Para ele é preciso superar um claro problema da oposição: a dificuldade em conquistar corações e mentes. A solução, segundo Dino, é ampliar as alianças e criar novos consensos.
Leia a íntegra da entrevista:
CartaCapital: Por que o desgosto com Bolsonaro não ganhou as ruas?
Flávio Dino: Há um ciclo de derrotas no campo progressista que é inédito. Ao menos para mim. Eu tenho 51 anos, e desde que comecei a participar da vida política, em 1983, houve mais vitórias do que derrotas. Esse sinal histórico se inverteu de 2013 para cá. É um pouco o espírito do tempo. E isso traz dificuldades. Há uma tendência da esquerda de achar que perdemos sempre por nossos erros. Às vezes são acertos alheios. É preciso entender que o outro campo também joga, também acerta. Eles conseguiram, de fato, formar uma aliança mais ampla que a nossa. A extrema-direita que hoje governa o País conseguiu, paradoxalmente, uma aliança mais ampla que a nossa. Precisamos inverter isso em 2020. Isoladamente, não se obtém vitórias eleitorais.
Acha que a esquerda conseguiu propor caminhos diferentes?
Tivemos algumas iniciativas neste ano, eu destaco duas. O PT apresentou um plano de empregos muito bom. Infelizmente, ele não foi adequadamente debatido, difundido, divulgado. Mas é um plano de ótima qualidade. Destaco também o projeto de reforma tributária justa, solidária e sustentável que foi protocolado na Câmara com apoio dos governadores do Nordeste.
Não é sintomático que a grande conquista da oposição tenha sido um acordo de “mal menor” no pacote anticrime?
Em matéria de resistência, acho que tivemos mais êxitos do que se poderia imaginar. Comparado com o cenário em janeiro, conseguimos evitar uma série de danos expressivos no que se refere a direitos. O que acho mais crítico é a mobilização social. Nós não conseguimos, ainda, garantir mobilização suficiente inclusive para que a resistência e as propostas sejam mais bem executadas. 
O antipetismo vai definir as próximas eleições como em 2018?
Aquele foi o ponto máximo desse ideário. O antipetismo seria por si só redentor. E estamos vendo que não. Esse discurso perde força pelos próprios resultados. Estamos indo para o quarto ano sem a esquerda no poder. A escassez de resultados do campo político adversário ajuda a racionalizar esse debate, compreender que todas as correntes políticas erram e acertam, mas isso não pode sustentar essa satanização ideológica. 
A ascensão de Bolsonaro como líder afetivo do reacionarismo não embola o jogo?
Neste momento, embola. Mas não é algo que se vá perpetuar. O Bolsonaro é uma figura datada, temporária. E o bolsonarismo não é uma tendência que veio para ficar no Brasil, é uma chuva de verão. Densa, mas vai passar logo, porque cada vez fica mais claro que essa corrente política governa para poucos, prioriza a violência e isola o Brasil no cenário internacional.  
Muita gente vê na sua eventual candidatura o antídoto ao antipetismo. O que acha dessa avaliação?
Antes de qualquer debate sobre 2022, é preciso ter algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, que está muito longe. Em segundo, que é preciso ter espírito de união e diálogo. E, em terceiro, muita humildade e pé no chão. Sendo coerente com essas premissas, não tenho tratado nem publicamente nem em privado desses assuntos. É preciso esperar e ver o que vai acontecer com o País e o nosso campo político lá para a frente. O fundamental é nos unirmos, termos aliança, amplitude, humildade, capacidade de diálogo. Temos antes eleições municipais. Este é o tema da hora. 
Sobre 2020, o Datafolha mostrou que, no Rio, 60% dos eleitores não votariam em candidatos de Lula nem de Bolsonaro.
A sociedade está muito estressada com anos e anos de conflito, e muito esperançosa por um caminho que melhore sua vida. É isso que as pesquisas têm mostrado. Não vejo esse automatismo. Que a rejeição a A e B necessariamente fortalece C. E não descartaria essa polarização, ao contrário. O antagonismo entre o bolsonarismo e o lulismo continua a ser a força estruturante da política brasileira. Acredito que essa divisão vai se manter. A disputa vai depender da capacidade de um polo ou de outro de ampliar alianças. Quem crescer mais terá mais vitórias.
Essas alianças devem incluir o centro e a centro-direita?
Sim, sem dúvidas. Basta olhar o exemplo da Argentina. Essa ampliação não pode ser retórica, não pode ser uma coisa vazia. No caso do Maranhão, eu venci as duas vezes em primeiro turno com uma aliança que, em 2018, foi do PT ao DEM. A depender de cada cidade, uma aliança com o campo mais ao centro não é ruim. Sempre foi positiva na história brasileira, resultou em avanços. Eu defendo a ampliação. Não podemos abrir mão do nosso programa, evidentemente. É preciso ter um programa básico, mínimo, que sustente essas alianças. Sem perder a identidade, mas também sem sectarizar. No nosso caso, os princípios fundamentais são: defesa da democracia, do Brasil e dos mais pobres. Aqui, juntamos em torno desse programa 16 partidos e estamos governando com todos. É possível, sim. E é necessário fazer. 
Não é preciso, antes, resolver os conflitos internos do campo progressista? Entre Ciro Gomes e o PT, por exemplo.
Ciro e Lula representam duas forças políticas fundamentais ao Brasil. Isso precisa ser superado. As eleições municipais são uma oportunidade para fazer isso na prática. Para que a gente consiga, diminuindo esse fosso que surgiu em 2018, um ambiente melhor até para que setores políticos que não estão à esquerda possam se aproximar. (Fonte: CartaCapital)
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23 dezembro 2019

O futebol sob a perspectiva feminina


Aira Bonfim estuda o futebol sob a perspectiva das mulheres e das ruas

Portal Vermelho, trtanscrito do Brasil de Fato

Que o futebol é uma paixão nacional, não se discute. Que grande parte do legado do esporte está apenas na história da modalidade masculina, também não. Mas e as mulheres?
É para defender a participação feminina na história do futebol que a historiadora Aira Bonfim dedica sua vida. Ela participou da criação do Centro de Referência do Futebol Brasileiro, entre 2011 a 2018, criado para levar ao público uma perspectiva feminista sobre o esporte.
O Centro funciona no espaço do Museu do Futebol, instalado no estádio do Pacaembu, em São Paulo (SP).
“Existem mulheres que desde sempre jogaram bola, e como elas não estavam na história? Acho que a grande ideia, quando a gente pensa no futebol de mulheres é: essa menina teve a oportunidade de experimentar o jogo? O jogo como uma brincadeira, onde, desde cedo, mulheres são colocadas na periferia dessa experiência.”
Na pesquisa conduzida por Aira, a historiadora também tenta dissociar a ideia do futebol das referências costumeiras ligadas ao esporte masculino e profissional. A busca da pesquisadora é pela prática do esporte longe dos grandes mercados da bola. 
“Que futebol é esse que a gente reproduz? Quando a gente fala de futebol, a gente quer falar de Seleção Brasileira? Ou a gente quer falar do universo dos clubes, que estão alcançando suas primeiras divisões, ou a gente quer voltar para essa ideia que está mais próxima, que é o futebol que está na rua, na várzea?”
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Chegando junto

‪Dois restaurantes populares para a população em situação de rua: um gesto de solidariedade em tempo de crise (Imagem e edição: Antônio Nunes e Sennor Ramos).‬

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O olhar de Pedro Caldas

O Capibaribe e a cidade. (Foto: Pedro Caldas)

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Energúmeno

‘Ideologia, polêmica e paralisia marcam MEC sob gestão do ministro Abraham Weintraub’ [Ele combina incompetência com ódio de classe ultraconservador].

22 dezembro 2019

Arte é vida

Farnese de Andrade

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Quem pagará a conta?


A privatização da água
Paulo Kliass, Carta Maior

Tem gente que chama esse tipo de situação de coincidência. Outras pessoas, mais sofisticadas, apelam para Carl Jung e falam em sincronicidade. Enfim, o fato que nos interessa reter no momento é que quase nada acontece por acaso. Ainda mais nesses tempos difíceis do bolsonarismo e da noite de trevas do neoliberalismo em que as forças do conservadorismo pretendem nos enfiar.

Pois então, parte da agenda política da semana passada pode ser lida por essa ótica. Enquanto o Itamaraty de Ernesto Araújo comandava uma triste operação de descrédito e inviabilização de avanços necessários na reunião da COP 25, os tucanos e seus aliados articulavam no Congresso Nacional um movimento que pode provocar um retrocesso secular em termos de um bem essencial também para o futuro do planeta.

A postura da diplomacia brasileira na Conferência do Clima da ONU em Madrid foi lamentável. Promoveram alianças com os setores que mais dificultam a busca de consensos para o cumprimento dos acordos para redução dos efeitos da poluição, do desmatamento e de outras ações sobre o processo de aquecimento global. As consequências dessa postura irresponsável para o futuro da humanidade são trágicas.

Estudos e pesquisas comprovam que alguns dos problemas associados a esse processo descontrolado de comprometimento do meio ambiente são os eventos climáticos extremos no plano global. Em particular, os períodos de grande seca e estiagem, onde a falta de chuvas pode aprofundar ainda mais a ausência de água para uso humano no planeta.

Tucanos em prol da privatização.

Pois enquanto os representantes da diplomacia bolsonarista nos faziam passar vergonha e isolamento no plano internacional, aqui no Congresso Nacional seguia a passos rápidos a tramitação de um Projeto de Lei de autoria do Senador Tasso Jereissati PSDB/CE). Trata-se do 
PL 3.261/2019, que foi votado rapidamente na casa comandada por David Alcolumbre (DEM/AP). O projeto promove uma mudança profunda no sistema brasileiro de água e esgotos. Tanto que recebeu o apelido de “marco regulatório do saneamento”.

Essa aliança entre os membros do antigo PFL e os tucanos conseguiu a impressionante marca de promover a aprovação de um documento tão complexo como esse em apenas uma semana no Senado Federal. Ele foi apresentado pelo autor em 30 de maio e aprovado de forma definitiva em 06 de junho. Uma loucura. O projeto passou como um bólido pela comissão de infraestrutura e foi aprovado pelo plenário em ritmo de urgência.

Na sequência, o texto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, também presidida por um parlamentar do Democratas. Mas a condução de Rodrigo Maia não foi inspirada na rapidez de seu par no Senado. O Presidente da Câmara constituiu uma Comissão Especial para tratar da matéria em agosto. Foram realizadas diversas audiências públicas para debater o tema e outros projetos já existentes foram apensados ao texto de Jereissati. Porém, a atenção acabou recaindo ao longo do ano para os assuntos mais urgentes, a exemplo da Reforma da Previdência, Reforma Tributária e Reforma Administrativa.

Com isso, o PL foi avançando sem muito alarde e a primeira votação no plenário da Câmara acabou ocorrendo a toque de caixa no dia 11 de dezembro. Naquela sessão foi aprovado o texto base, mas ainda estão pendentes de apreciação e votação as emendas apresentadas pelos deputados. A estratégia para angariar apoios nas diferentes bancadas conta com a pressão dos próprios governadores da oposição. A exemplo do ocorrido com temas como as reformas da previdência e administrativa, parte dos chefes de executivo estadual contam com a aprovação das mesmas pelo Congresso Nacional para implementar essas ações nos seus espaços de atuação.

Marco regulatório ou todo poder ao capital?

A espinha dorsal do novo marco regulatório passa pelo aproveitamento da já existente Agência Nacional de Águas (ANA) e com a intenção de ampliar seu escopo de atribuições. Assim, ela se transforma em Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, com a competência para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.

Além disso, o texto abre espaço para estimular a privatização das empresas públicas ou estatais de saneamento já existentes pelo país. Por outro lado, o novo ordenamento jurídico cria as bases para a transformação dos serviços de saneamento público em mais uma mercadoria a ser comercializada pelas empresas privadas. No caso, caberia à agência reguladora as funções de determinação de preços e condições de operação nesse mercado.

Apesar do discurso pró liberalização e contra a presença do Estado no setor, o fato concreto é que as condições técnicas e operacionais no sistema não admitem a possibilidade da tão abençoada “livre concorrência”, como tanto perseguem os liberais. Imagine o cidadã/consumidor decidindo qual das torneiras da cozinha ele vai abrir em determinado dia para obter a menor tarifa de água. Ou então, por qual dos canos de esgoto ele vai lançar seus dejetos para a rede de saneamento, também para “maximizar” seus interesses econômicos.

O modelo das agências reguladoras e a forma como têm sido conduzidas desde sua criação tornam evidentes os verdadeiros interesses por trás do discurso de concorrência e eficiência. Os cidadãos e consumidores sempre foram deixados para trás no que se refere a prioridades nas respectivas agendas. Banco Central, ANEEL, ANATEL, ANS, ANVISA, ANAC e outras agências converteram-se em fiéis defensoras dos interesses das empresas que atuam nos setores que elas deveriam regular. Preços, qualidade dos serviços, defesa dos consumidores e temas semelhantes são sistematicamente esquecidos.

Ora, todos sabemos que esse blábláblá é mera fantasia idealizada para justificar a transferência de mais esse ramo da atividade econômica para a maximização da acumulação de capital privado. Não existe concorrência possível nesse mercado. Trata-se de um modelo que só admite o monopólio como ofertante do bem. Cabe à sociedade decidir se prefere uma empresa pública ou privada.

Tampouco é mera casualidade que essa mudança no marco regulatório ocorra no momento em que os grandes conglomerados internacionais do setor estejam se reposicionando estrategicamente. Nestle e Coca Cola, por exemplo, começam a se preparar para o domínio de fontes de água por todos os continentes. Isso significa que o processo de mercantilização de mais esse bem da natureza avança rapidamente em escala global.

Água é fator estratégico para Humanidade.

A grande maioria dos estudos prospectivos realizados no mundo são unânimes em apontar a 
água como bem essencial e cada vez ameaçado em sua disponibilidade. Assim como ocorreu com o petróleo e outras fontes energéticas no passado, a tendência no tempo presente é de considerar as fontes de água como reservas estratégicas de sobrevivência das nações. Fala-se inclusive que ela (ou melhor, a ausência dela) pode converter-se em elemento detonador de conflitos bélicos regionais.

E nessa matéria, o Brasil apresenta uma posição também de destaque. Temos uma costa oceânica de milhares de quilômetros. Apresentamos uma rede fluvial das mais importantes do planeta, com bacias estratégicas como a amazônica. Nosso território está localizado sobre uma das mais importantes reservas de água subterrânea, o Aquífero Guarani.

Os dirigentes dos grandes negócios em escala global não se cansam de pressionar governos para que as fontes de água também sejam submetidas a processo de liberalização e privatização. Não nos esqueçamos de que nosso subsolo foi entregue à exploração privada, depois de décadas de propriedade e monopólio de exploração pela União. Assim foi com minérios e petróleo. A exploração da energia também seguiu o mesmo caminho. Agora, a fonte de maior valor estratégico no futuro é a água.

Essa é a razão pela intensa movimentação nos últimos tempos. O interesse é um só. Trata-se da busca pela apropriação privada dos rendimentos derivados do consumo da água. Cabe às forças democráticas e progressistas em nosso País exercer seu papel e impedir que esse caminho da privatização seja viabilizado por meio desse marco regulatório desvirtuado.


Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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Humor de resistência

Laerte genial.

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Imbróglio no clã


Onde está o fim do caso Flávio

Janio de Freitas, Folha de S. Paulo

Se as investigações irão até o fim, é a expectativa de sempre, mas com a curiosidade diminuída no caso do Bolsa Família particular criado pelos Bolsonaro. O endereço do fim não é obscuro, mais do que sugerido por indícios acumulados desde os primeiros sinais do caso. Quase se diria que as revelações começaram pelo que seria o seu final.
Logo de saída, um cheque de R$ 24 mil, como restituição parcial de um empréstimo a quem recebeu R$ 2 milhões na conta, não é explicação convincente. Tanto mais se o cheque é de um sargento da Polícia Militar para a mulher de um então deputado, estes já como presidente eleito e futura primeira-dama. A própria origem do cheque pôs em dúvida a sua lisura, dada a ligação do emitente com chefes milicianos.
Ao menos nove parentes da segunda mulher de Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, foram funcionários nominais de Flávio Bolsonaro quando deputado. Todos deixando parte do ganho com o sargento-coletor Fabrício Queiroz. Alguns, nem moradores do Rio.
O interessado nas nomeações desses “laranjas” nunca seria qualquer dos filhos Bolsonaro, que não conviveram bem com a nova mulher do pai. Com motivo para as nomeações era o Bolsonaro ligado a Ana Cristina Valle e sua família. Usou o gabinete do filho. Integrante do esquema de desvios, portanto, e com autoridade de chefe.
No estágio atual do caso, o escândalo só tem olhos para Flávio e suas (ir)responsabilidades. A propósito: até agora, bom trabalho do Ministério Público do Rio e do Judiciário estadual. Seu relatório é minucioso, rico em fatos apurados, extenso a ponto de cansar. Por ora, no entanto, contribui para o fabricado esquecimento de feitos alheios. É o que se passa, por exemplo, com uma contratada do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara, a senhora que não passou de vendedora de suco de açaí, vizinha em Angra dos Reis do pescador, deputado e depois presidente antiambientalista. Sem envolvimento dos filhos, era o chefe operando em pessoa com recursos desviados, no mesmo esquema que beneficiou seu velho amigo 
Queiroz, aparentados e familiares de milicianos.
Os indícios para uma investigação levada até o fim, no Bolsa Família ativado pelos Bolsonaros, são numerosas. Mas nem assim levam a esclarecimentos que não deveriam ser difíceis, mas parecem sê-lo. Ou, pior, por serem dados como aceitáveis os fatos que fazem o escândalo.
Sabe-se que o bolsonarismo militar, com predomínio do Exército, aprova a exploração econômica da Amazônia, a reconsideração das reservas indígenas —duas teses que integram as diretrizes do Exército há quase 50 anos—, apoiam a militarização das escolas, a mudança dos financiamentos culturais, e por aí. Além disso, a presença de duas centenas de militares em cargos governamentais associa o governo e o Exército. A associação não se dá com a ciência, a cultura, a redução da desigualdade em que o Brasil foi declarado “caso mundial mais grave”, o desenvolvimento industrial, alguma coisa grandiosa como país.
Reformados ou da ativa, os militares que integram esse governo fazem parte de um esquema de poder. Não participam, aí, dos ramais acusados ou suspeitos de ações, passadas ou não, como desvio de verbas públicas, nomeação e exploração de funcionários fantasmas, conexão com segmentos do crime, e outras. 
Mas são parte do conjunto. Ainda que à margem dos fatos escandalosos, integram sem ressalvas, e até com elogios, o mesmo esquema de poder sob denúncias e suspeitas. O que lembra parte das palavras com que o general Eduardo Villas Bôas, quando comandante do Exército, pressionou o Supremo para bloquear a candidatura de Lula: “(...) resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras (...)”.
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