12 abril 2020

Cotidiano da crise



O futuro depois da quarentena
Melka Pinto

Ninguém está bem, ninguém pode estar bem esses dias, mas precisamos ficar. Eu sempre odiei ir ao dentista, e me lembro que quando eu era pequena que tinha que sentar naquela cadeira que pra mim era assustadora, começava a pensar em sorvete, eu focava no sorvete e nada tirava ele dos meus pensamentos, era o meu mecanismo de fuga do incômodo de estar ali. Nesses dias caóticos que as notícias são as piores possíveis e as previsões de futuro são piores ainda, confesso que ainda não sei bem no que pensar pra fugir, mas tenho deixado de lado leituras, estudo, pequenas disposições em fazer uma comida básica ou assistir uma série legal, talvez seja a fuga que criei, paralisar e tentar não pensar em nada, ver as horas passarem na minha frente.
Essa fuga não é legal. E acredito que não estou sozinha nesse modo de operar na quarentena. E como ninguém pensa em nada, penso que na verdade tenho pensado em muita coisa, de pensamentos não se foge. E tento pensar sempre no depois, já que o presente é angustiante. A falta de coesão pra que todos nós possamos sustentar a quarentena como os especialistas recomendam, já está causando centenas de mortes no nosso país e a tendência é uma progressão devastadora. Falta coesão, mas falta muita coesão, como pode um chefe de Estado como o presidente ser tão irresponsável num momento como esse?
Ao povo falta consciência e condições, como quase sempre os faltou, elevação de consciência das pessoas e condições materiais sempre foi uma dívida histórica do Estado brasileiro com o nosso povo. E não vai ser agora, no meio da guerra, que vamos conseguir reparar isso da noite pra o dia. Nessa hora, os principais veículos de comunicação deveriam servir como grandes armas de combate ao COVID-19, usadas pelo aparelho do Estado, de forma clara, objetiva, agregadora, com propósito de orientar as pessoas, proteger e conscientizar, os jornalistas cumprem papel importantíssimo nesse momento, mas nos falta um/uma líder, que promova a união e a perspectiva de segura nacional necessária.
As faltas de condições é outro fator que conhecemos muito bem. Falta o poder a milhões de brasileiros e brasileiras de fazer ao menos três refeições diárias dignas e ter estrutura para realizar uma boa higiene pessoal. Essas são as condições básicas para ficar em casa, principal forma de prevenção do novo coronavírus. Essas também são as condições mínimas básicas de sobrevivência e dignidade para qualquer ser humano. Constatar que nos falta exatamente isso diariamente, deveria ferir profundamente aqueles que detêm de alguma forma o poder de promover as reformas necessárias para a qualidade de vida do nosso povo. Não sei se os atinge, mas a mim, fere a alma.
Mais uma vez, o povo pobre, trabalhador, sem condições básicas de sobreviver, deve pagar a maior parte dessa conta. Tudo sempre evidenciará a luta de classes que nos move. Então sigo me perguntando, e depois mesmo sem ter muitas perspectivas do significa esse depois. O que será que fica depois com o que restar. O que terá impactado de forma maior na vida das pessoas? A dimensão que a pandemia dá à espiritualidade, às escolhas políticas, às relações pessoais, ao sentido da solidariedade, as lutas sociais, o autoconhecimento de cada um/uma? Qual dessas terá maior impacto na vida das pessoas?
Eu penso que se depois que essa tempestade passar, a maioria das pessoas enxergarem e levarem nas suas práticas de vida as questões que citei acima da mesma forma, humanamente a quarentena não nos serviu de nada, se nada mudar, será a expressão maior que não fomos capazes de assimilar as obviedades que estão postas, pelo menos bastante coisas são óbvias pra mim e para outras pessoas talvez nada seja, mas precisamos apontar sobre tudo e entender que o novo coronavírus desvende dos nossos olhos muitas coisas.
Desvende que direitos básicos como renda, moradia, alimentação, educação, saúde e saneamento devem ser garantidos a todas as pessoas, que precisamos de representantes do governo que entenda isso e priorize isso como uma política de Estado que está descrita na nossa Constituição e isso diz respeito as nossas escolhas na hora do voto. Desvende que precisamos de investimentos maciços em ciência e tecnologia, incluindo nisso a valorização daqueles e daquelas que fazem pesquisa dentro das instituições públicas, para que essas pessoas tenham melhores condições de descobrir vacinas, medicamentos, ou qualquer outra forma de frear qualquer doença que venha a existir.
Desvende que precisamos fortalecer o Sistema Único de Saúde, o SUS, e prepará-lo em infraestrutura e recursos humanos para qualquer ameaça sanitária que possa nos acometer. Desvende que todos nós precisamos respirar e olhar pra dentro de vez em quando já que na correria do dia a dia a gente ignora tanto essa necessidade básica humana que é a conexão com você mesmo, dos pés a cabeça, corpo, mente e alma. Desvende que as redes de solidariedade devem ser um exercício permanente, porque se a gente parar pra olhar e ouvir mais, sempre vai encontrar alguém que possamos oferecer algum conforto, que pode ser material ou não.
Desvende que precisamos ter saúde, ter uma boa alimentação, combater o sedentarismo e fazer exercícios físicos diários e boas práticas de estilo de vida, como o combate ao tabagismo e ao alcoolismo. Desvende quem importa na sua vida, quem faz falta, quem tem valor, e com quem você deve celebrar ela porque apesar de tudo, estar vivo é um grande presente. E assim como todo mundo, quero os meus vivos depois de tudo isso, pra poder ver a vida de uma forma melhor, uma vida bem diferente de antes. Tenhamos fé nessa nova vida que pode surgir depois da tempestade, tenhamos fé nas pessoas e no futuro.
Mas agora se some a luta, seja exemplo de consciência, fique em casa, ajude a conscientizar outras pessoas, ajude alguém, mande boas energias para os que estão lutando para sobreviver, da doença ou da vida.
[Ilustração: Damian Klczie]

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