15 dezembro 2022

Uma crônica para descontrair

PASTEL E CAFÉ

Karina Buhr, revista Continente

 

Desci a rua pro pastel, me reconheci mais na sombra emendada nos pés que no reflexo depois do banho, dois por sete e cinquenta. Na minha mancha no chão, piso em cima da minha cabeça e sustento. No espelho não tinha os detalhes, um contorno fino dentro da moldura oval onde um tudo cabia, falava mais que minha boca aberta, confronto, e ainda era de manhã. Amanhã vai ser tão bom quanto hoje, me embebedo dessa profecia e fritura com orégano queimado. Amanhecendo de novo vai ser refrescante, prometo, os dentes esmagados pela escova com pasta demais, caindo a baba de hortelã, o cabelo se soltando do pitó e se embrenhando no meio da confusão de espuma, mãos e águas geladas. 

Minha cara não está boa, me conta o armarinho do banheiro, mas em compensação não está pior. Eu não olharia pra mim na rua, o que considero uma vantagem. Não acho minha roupa do trabalho, tenho tempo. Passo o café, nua mesmo, e a toalha na cabeça. O líquido preto quando cai não tem garrafa embaixo, desemboca direto no ralo, que alaga tudo, caio dentro dele, não me queimo, grito nas alturas, não sai som, mergulho. A roupa, agora estou atrasada, por que não boto nunca o despertador? Uma onda de café fervendo, agora me queimo e escuto vozes. É um conselho, certeza, uma chave, faz todo sentido, me concentro pra ouvir plenamente. Nada. 

O ralo chupa a bebida inteira, sou um espectro emergindo do pântano, cheia de algas nos braços, respirando ainda os pedaços das cinzas do cigarro no ar. Onde não tem pó de café nem plânctons, tem uma mensagem desenhada, escrita com os dedos, não os meus. Viro o pescoço, sem a visão alcançar, me perco, a hora, vou chegar no trabalho sem roupa, atrasada, borrada de café e com plânctons, acho que não vai ter problema, nada assusta mais ninguém. 

Encaixo perfeitamente os óculos nas orelhas, a mochila nas costas e um cigarro na boca, ela mastigando, caninos trepados à mostra. A mensagem escrita! Tenho que fotografar antes que suma! Não encontro nada de tirar foto, minutos a mil, atrasada e contando, a lama seca e coça, aqui a câmera! "Cabeça lateja e oca." O mais importante recado, a frase senha do sonho, que combinei comigo na última noite, quando ela aparecer sei que estou dormindo e é necessário atenção, se não cuidar, tudo se perde numa fração de segundo. 

Deu certo, aqui está um padrão, a pessoa eu acordada comunicando comigo pessoa dormindo, somos sombra e reflexo colados. Onde eu queria chegar. É fixar na mente e costurar para não fugir, com linha grossa, quando acordar, anotar no caderno do lado do colchão, a caneta já destampada, não perder memória com movimento, concluir antes de acordar, cuidado pra não derramar o copo d’água bem em cima. Não, despertador, não toque! Levanto e nem sei mais porque estava tão ambientada. Vou botar a farda, fazer um café e tomar sem açúcar, como fazem os fortes. Vou preparar um banho de folha pra tomar na volta do último expediente do ano. Vou bater um bolo, mentira, mandar mensagens de Natal e feliz ano novo e dormir normal. O ano não durou pouco, mas terminou, meus parabéns! [Ilustração: Karina Buhr]

Leia também: ‘Bonequinha de louça’ https://bit.ly/3o1UX3t

Nenhum comentário: