PASTEL E CAFÉ
Karina Buhr, revista Continente
Desci a rua pro pastel, me reconheci mais na sombra emendada
nos pés que no reflexo depois do banho, dois por sete e cinquenta. Na minha
mancha no chão, piso em cima da minha cabeça e sustento. No espelho não tinha
os detalhes, um contorno fino dentro da moldura oval onde um tudo cabia, falava
mais que minha boca aberta, confronto, e ainda era de manhã. Amanhã vai ser tão
bom quanto hoje, me embebedo dessa profecia e fritura com orégano queimado.
Amanhecendo de novo vai ser refrescante, prometo, os dentes esmagados pela
escova com pasta demais, caindo a baba de hortelã, o cabelo se soltando do pitó
e se embrenhando no meio da confusão de espuma, mãos e águas geladas.
Minha cara não está boa,
me conta o armarinho do banheiro, mas em compensação não está pior. Eu não
olharia pra mim na rua, o que considero uma vantagem. Não acho minha roupa do
trabalho, tenho tempo. Passo o café, nua mesmo, e a toalha na cabeça. O líquido
preto quando cai não tem garrafa embaixo, desemboca direto no ralo, que alaga
tudo, caio dentro dele, não me queimo, grito nas alturas, não sai som,
mergulho. A roupa, agora estou atrasada, por que não boto nunca o despertador?
Uma onda de café fervendo, agora me queimo e escuto vozes. É um conselho,
certeza, uma chave, faz todo sentido, me concentro pra ouvir plenamente.
Nada.
O ralo chupa a bebida
inteira, sou um espectro emergindo do pântano, cheia de algas nos braços,
respirando ainda os pedaços das cinzas do cigarro no ar. Onde não tem pó de
café nem plânctons, tem uma mensagem desenhada, escrita com os dedos, não os
meus. Viro o pescoço, sem a visão alcançar, me perco, a hora, vou chegar no
trabalho sem roupa, atrasada, borrada de café e com plânctons, acho que não vai
ter problema, nada assusta mais ninguém.
Encaixo perfeitamente os
óculos nas orelhas, a mochila nas costas e um cigarro na boca, ela mastigando,
caninos trepados à mostra. A mensagem escrita! Tenho que fotografar antes que
suma! Não encontro nada de tirar foto, minutos a mil, atrasada e contando, a
lama seca e coça, aqui a câmera! "Cabeça lateja e oca." O mais
importante recado, a frase senha do sonho, que combinei comigo na última noite,
quando ela aparecer sei que estou dormindo e é necessário atenção, se não
cuidar, tudo se perde numa fração de segundo.
Deu certo, aqui está um padrão, a pessoa eu acordada comunicando comigo pessoa dormindo, somos sombra e reflexo colados. Onde eu queria chegar. É fixar na mente e costurar para não fugir, com linha grossa, quando acordar, anotar no caderno do lado do colchão, a caneta já destampada, não perder memória com movimento, concluir antes de acordar, cuidado pra não derramar o copo d’água bem em cima. Não, despertador, não toque! Levanto e nem sei mais porque estava tão ambientada. Vou botar a farda, fazer um café e tomar sem açúcar, como fazem os fortes. Vou preparar um banho de folha pra tomar na volta do último expediente do ano. Vou bater um bolo, mentira, mandar mensagens de Natal e feliz ano novo e dormir normal. O ano não durou pouco, mas terminou, meus parabéns! [Ilustração: Karina Buhr]
Leia também: ‘Bonequinha de louça’ https://bit.ly/3o1UX3t
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