25 fevereiro 2014

A vida do jeito que é

Fogo no cais
Marco Albertim, no Vermelho

Toda multidão é cega, sem exceção; não que tenha perdido o direito de enxergar, tampouco um flagelo num fim de tarde ofuscou-lhe a razão. É cega porque tem em mira tão somente o propósito que juntou-a no meio da avenida. E o propósito, por mais pasmo que cause a quem a vê com estranheza, emprenha-a de razões.


Assim, a multidão, inda que não ocupando os dois lados do Cais do Apolo, assomou de um lado e de outro; uma multidão rala, por isso mesmo estridente e disposta a reproduzir com agonia a serenidade dos cem mil que ocuparam a avenida Conde da Boa Vista em junho.

Primeiro ocuparam o lado da avenida, contrário ao Tribunal Regional do Trabalho. Homens, mulheres e crianças, até crianças de colo, mantidas a custo em pé, segurando-se na barra da saia da mãe. Moços e moças com os cambitos expostos, descalços ou com chinelos estropiados. Nada conforme a elegante imponência da fachada do TRT. Troncos grossos, misturados a galhos secos de madeira, foram espalhados na avenida; em seguida, a mesma porção do madeirame foi disposta no lado do TRT.

Não era um fim de tarde anunciando um flagelo soturno. Dez horas sob o sol incidindo nas indiferentes águas do rio Capibaribe. Troncos e galhos secos, de fácil combustão, à espera da centelha para conferir o vigor de suas moléculas. Os raios do calor, antes rompidos pelo trânsito de ônibus e veículos menores, expuseram-se numa festiva dança de traços verticais, prateados. A madeira incendida, mesmo à luz do dia, logo fez-se em brasa ruidosa. Feito primitivos celebrando a ocupação do bocado nunca lhes oferecido, homens de morins puídos, mulheres de brocados desbotados, desdentados, rostos suados em justificada convulsão, soltando apitos agudos, gritos moleques, próprios dos rudimentos apreendidos para dar vida a um protesto.

O intento, em parte, fora alcançado. O trânsito fora interrompido. Não ocuparam a calçada do prédio da prefeitura, mesmo porque, a guarda municipal junto a um pelotão da PM, montara a barreira para impedir o acesso à administração do município.

A queima do madeirame, seguindo o curso próprio da quantidade de combustão, poupou-lhes o trabalho de monitorar a duração do fogo.

Puseram-se de um lado e de outro da avenida, mais do lado da prefeitura que do outro. No lado escasso de manifestantes, os moleques deitaram, embolaram no chão quente; os cambitos cinzentos, apáticos ao queimor do chão, fizeram-se da mesma cor do cimento cinza ainda com ressaltos na superfície.

No meio, entre um lado e outro do Cais do Apolo, um homem segura um extremo de uma faixa com pouco mais de dois metros. Do outro, o parceiro também não tem pruridos de mostrar a boca com lacunas nas gengivas. As frases na faixas semelham-se aos garranchos de dentes que há em cada uma das bocas. Do outro lado, a fábrica de biscoitos Pilar não esconde a vaidade com que deixa o vento levar o perfume da farinha de trigo no açúcar. Os homens que seguram a faixa moram ali mesmo, na comunidade que tem o nome da fábrica. Por certo não lhes incomoda o estômago o cheiro do petisco, visto ser de fácil compra, mais fácil que a um quilo do gorduroso jabá. Incomoda-lhes morar ali, em casas de alvenaria em ruínas, pressionados pelo comércio de atacadistas e pelo Cais da Alfândega, onde o monumento a Luiz Gonzaga se ergue de metais prateados durante o dia, orvalhados à noite.

Dois bem-vestidos moços estão na calçada da prefeitura; desceram às pressas para ouvir o reclamo.

- Formem uma comissão para falar com o departamento - diz um deles.

Logo, uma mulher de vestido rendado, de cor imprecisa, toma a dianteira. Atrás dela vêm outras duas. A essa altura, duas mangueiras despejando jatos d´água, dão conta do fogaréu no madeirame.

A mulher tem um filho de colo que carrega na cintura. A criança chora, posto que a mãe deixa-a com outra, enquanto ela negocia com a prefeitura a transferência da comunidade do Pilar para outro local.

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