05 fevereiro 2019

Dura realidade


Desigualdade sócio-econômnica e desempenho educacional
Jorge Alexandre Neves, Jornal GGN

O mundo poderia ser mais simples, mas, infelizmente, não é. E é por isso que a alta gestão das políticas públicas demanda gente bem preparada para lidar com realidades que são extremamente complexas. De modo geral, essas pessoas capacitadas obtiveram seu preparo com uma mistura de estudo e experiência profissional. Há exceções, como é o caso de Lula, cuja extraordinária inteligência intuitiva proveu uma capacidade fora do comum para a tomada de decisões executivas e para a negociação política.

Nas recentes entrevistas que deu ao Estadão e à Veja e nas manifestações via Twitter, o ministro da Educação, Ricardo Vélez, mostrou que realmente não tem capacidade para exercer o cargo para o qual foi indicado por Olavo de Carvalho(1). Ele analisa o problema educacional brasileiro com a ótica do senso comum, de quem não consegue perceber sua complexidade.
Na última semana, o ministro falou várias bobagens, algumas que causaram até muita indignação, como as ofensas que fez ao povo brasileiro. Contudo, vou me fixar numa afirmação dele que é recorrente no senso comum, a de que se elevarmos a qualidade da educação pública, resolveremos o problema das desigualdades educacionais e, portanto, a política de cotas se tornará dispensável.
Infelizmente, o raciocínio simplório do ministro não tem respaldo nas análises especializadas. No mundo real, a elevação pura e simples da qualidade da educação pública faz aumentar a desigualdade educacional e torna ainda mais necessárias as cotas socioeconômicas e raciais. Para o caso brasileiro, José Francisco Soares e Maria Teresa Gonzaga Alves (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022003000100011&lng=pt&tlng=pt), entre outros, mostraram evidências desse complexo problema.
Como essa não é uma realidade apenas brasileira, trago, abaixo, um gráfico para ilustrar o referido problema usando dados de escolas e alunos dos EUA (2). No gráfico, temos a análise interativa entre três variáveis: o nível socioeconômico da família do aluno (NSE), o desempenho do aluno em um teste padronizado de matemática (DESEALUN) e o nível de qualidade da escola (QUALIDAD). A curva azul diz respeito a alunos de escolas de baixa qualidade (nas quais o desempenho médio dos alunos está 2,125 desvios padrões abaixo da média e está no 25º percentil) e a curva vermelha se refere a alunos de escolas de alta qualidade (nas quais o desempenho médio dos alunos está 2,036 desvios padrões acima da média e está no 75º percentil).
O que o gráfico acima mostra é que o efeito do nível socioeconômico da família do aluno sobre seu desempenho é maior nas escolas de maior qualidade. Observe-se que, para qualquer nível socioeconômico, estar em uma escola de melhor qualidade propicia desempenho mais alto do aluno. Todavia, quanto maior o nível socioeconômico do aluno maior também a distância do desempenho entre aqueles que estão em escolas de alta qualidade e aqueles que estão em escola de baixa qualidade. Ou seja, em escolas de melhor qualidade a desigualdade de desempenho pelo nível socioeconômico das famílias dos alunos é maior do que em escolas de pior qualidade.
Como essas evidências podem parecer contraintuitivas para muitos, costumo tentar facilitar a compreensão desse fenômeno com uma situação hipotética. Imagine-se uma escola pública que não conta com uma biblioteca. Em seguida, imagine-se que essa escola, após o período de férias, recebeu uma biblioteca com 1.000 títulos paradidáticos adequados à idade escolar dos alunos. Quais alunos têm maior probabilidade de retirar livros da nova biblioteca para ler? Não é difícil de responder: aqueles que vêm de famílias com maior nível socioeconômico, principalmente nas quais os pais têm o hábito da leitura. Perceba-se que algo desejável – a instalação de uma biblioteca na escola – vai produzir resultados positivos (a elevação da prática de leitura entre os alunos), mas também negativos – uma maior desigualdade de desempenho entre os alunos de maior nível socioeconômico e os de menor.
Há na internet um pequeno documentário sobre o sistema educacional finlandês (https://www.youtube.com/watch?v=oXmOkMj9vyU). Nele, há uma entrevista com Pasi Sahlberg – especialista em educação e principal formulador da reforma educacional da Finlândia – na qual ele vai diretamente ao ponto ao afirmar que políticas educacionais só podem ser bem sucedidas se associadas a políticas sociais. Por que isso? Porque em qualquer sociedade a família é a instituição que mais gera desigualdade. Se o Estado não consegue equalizar as condições socioeconômicas das famílias, a elevação da qualidade da educação causa, inevitavelmente, elevação da desigualdade de desempenho entre os alunos.
No Brasil, em particular a partir da década passada, vínhamos conseguindo evoluir nos dois tipos de políticas públicas, as sociais e as educacionais(3). Infelizmente, corremos sério risco de retroceder.
Jorge Alexandre Neves - Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Baranquilla, Colômbia), pesquisador do CNPq. Especialista em desigualdades socioeconômicas, análise organizacional, políticas públicas e métodos quantitativos.
(1) Em entrevista ao Estadão, Mozart Neves Ramos – que quase se tornou ministro no lugar do atual titular – resume bem o que ele representa na educação brasileira: “Não conhecia o novo ministro. E milito na gestão da educação desde 1990. Ninguém conhecia”.
(2) Os bancos de dados para a análise resumida no gráfico vem com um software de acesso gratuito do HLM (http://www.ssicentral.com/hlm/student.html).
(3) Há inúmeras evidências de estudos científicos mostrando o efeito do Programa Bolsa Família sobre a redução da desigualdade educacional. Eu mesmo sou um dos autores de um estudo sobre o efeito positivo do Bolsa Família sobre a educação que é o capítulo de um livro que organizei com Murilo Fahel (http://www.repositorio.fjp.mg.gov.br/handle/123456789/192). Quanto à eficácia da política educacional naquele período, citarei um trecho do relatório do PISA-2012 que já havia citado em outro coluna minha no GGN: “Embora o Brasil tenha um resultado abaixo da média da OCDE, seu desempenho médio em matemática subiu desde 2003 de 356 para 391 pontos, fazendo do Brasil o país com a maior elevação desde 2003. Melhoras significativas também foram observadas em leitura e ciências”.
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