24 maio 2020

Dá pra rir e pra chorar


Hipocrisia e ciência
Cícero Belmar*, na Revista de Crônicas Rubem

Para se livrar de tanta notícia punk sobre a pandemia, você procura uma novidade diferente para ler e depara com esta, que tanto dá para ri quanto para chorar: o Supremo Tribunal Federal, reunido de forma remota, por videoconferência, anulou a restrição de doação de sangue por homens gays. Foi uma decisão histórica, tomada no dia oito de maio.
Dá para rir de alegria porque comprova que a razão, a ciência e o humanismo foram superiores à ignorância, o autoritarismo e a demonização do ser humano. Mas também dá para chorar porque é impensável que até o mês de maio do ano da Graça de 2020, do terceiro milênio Depois de Cristo, o Brasil ainda insistia em manter regra de ideologia medieval.
Detalhe importante: o julgamento só ocorreu porque o ritmo de doações foi reduzido, devido à pandemia da covid-19, resultando na queda dos estoques dos bancos de sangue no País. Então, a Defensoria Pública da União pediu agilidade no caso que estava parado desde outubro de 2017.
Por mais que deixe de existir, a restrição de doação de sangue por parte dos homens gays continuará sendo uma nódoa da sociedade brasilDá pra rieira.
Essa restrição foi criada quando ainda se pensava que a Aids era a espada da ira divina voltada para o pescoço de quem gostava de pessoas do mesmo sexo. Essa opinião doentia ditou, inclusive, parâmetros do que é certo e errado, serviu de base para decisões de governo e fez a cabeça de muita gente sobre o padrão de “normalidade”.
Era a década de 1980 e o fundamentalismo mostrava as garras, querendo escolher e unificar um modelo de ética para o comportamento social. O argumento do sangue gay, na época, veio a calhar. Dizer que ele era contaminado teve eficácia garantida. Conservadores (de ontem, hoje e sempre) querem uma sociedade abstrata, formatada, baseada numa educação puritana de uma elite branca e heterossexual. Para esses, existem dois sexos: o lícito e o ilícito.
Quem pratica o ilícito não faz parte dos “eleitos”. Muitos fundamentalistas se sentem no direito de pedir a expulsão, do Paraíso, desses “impuros e pervertidos”. Não são poucos os que lançam o homossexual no limbo do inferno da sociedade. Quando a epidemia da Aids foi conhecida, encontrou eco nessa hipocrisia, que é prima-irmã da ignorância. O sangue dos gays foi rejeitado.
Essas pessoas entendem que a experiência humana só admite o heterossexual, como se a natureza impusesse uma sexualidade.  Para essas, é melhor aceitar uma tirania do que um homossexual. Julgam e condenam, sem admitir o contrário. O pior é que, em muitas vezes, a hipocrisia vira ciência.
Se isso serve de consolo, já houve épocas bem piores na história da nossa civilização. Não faz muito tempo, autoridades de saúde tratavam a diversidade da orientação sexual como doença mental. Em diversos países “o crime nefando” era previsto em lei, cujas penalidades iam do cárcere à condenação à morte.
Tudo isso é lamentável, mas também contraditório. Sabe por quê? As pessoas são ambíguas quando acham que a “sociedade” tem que ser viril. Não tenho dúvidas de que a opção pela virilidade, nesse caso, é apenas o objeto do desejo sexual de quem pensa assim.
Um desejo que pode ser inconsciente, mas existe de fato. Nesse caso os conservadores, homens ou mulheres, que querem uma sociedade viril, certamente a-do-ram uma testosterona. Só se sentem realizados num ambiente de machões e machistas.
Hoje, quando esperamos o fim da pandemia, para “começarmos uma nova era”, temos que pensar nessas coisas. Até por que o novo tempo, que é tão aguardado,  não vai se instalar enquanto a gente não se permitir às mudanças interiores. Nada vai acontecer enquanto as liberdades pessoais, inclusive a  sexual, continuar sendo uma prisão.

*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

[Ilustração: Paul Klee]

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