“Ameaça chinesa”: raízes de um racismo colonial
Diego Pautasso/portal da Fundação
Maurício Grabois www.grabois.org.br
Desde
o século XIX, os EUA alardeiam um “perigo amarelo”, mas preconceito recrudesceu
(e ganhou o mundo) após a revolução de Mao. Por trás de paranoias
anticomunista, está o temor que a China abale sua hegemonia — geopolítica e
comercial.
Nessa
jornada de pesquisa e difusão científica sobre a temática da China, não raro encontramos
todo o tipo de preconceito. Alguns são simples desconhecimento; já outros
revelam xenofobia de graus variados. E se expressa das mais variadas formas,
desde os clichês sobre as formas de governo, a desconfiança sobre quaisquer
números oficiais, os preconceitos contra produtos até manifestações de
hostilidade – que ficaram escrachadas no governo Bolsonaro.
A
genealogia desse processo remonta ao século XIX. O Perigo Amarelo foi uma das
facetas da expansão do capitalismo e de seus processos coloniais, cuja natureza
incluiu sistemáticos processos de desumanização de raça, gênero e classe para
permitir a livre exploração. O Perigo Amarelo é uma das consequências da
supremacia branca e do seu fardo colonial.
Enquanto
pilhava a China em seu Século de Humilhações (1839-1949), as potências
capitalistas produziam acelerada diáspora chinesa. Milhares destes foram
recrutados para trabalhar lado a lado com afro-americanos nas plantações de
açúcar após a Guerra Civil. Muitos trabalhadores chineses (e indianos), os
chamados coolies,
acabaram servindo também como mão de obra servil para construir as ferrovias
que integraram o território estadunidense no contexto da Far
West. As tensões trabalhistas (e os salários mais baixos dos
imigrantes) e mudanças nas identidades culturais-nacionais acabaram por
reforçar a xenofobia do WASP (branco, anglo-saxão e protestante) contra negros,
latinos e chineses, sobretudo. Os chineses também foram objeto de leis e
políticas anti-asiáticas sobre imigração e naturalização por quase um século.
As leis de exclusão codificaram a ideia de que os chineses eram inassimiláveis.
Começou com o Ato de Exclusão de Chineses (1882) e chegou ao Ato de Exclusão de
Asiáticos (1924), que vigorou até 1965. Sob a narrativa do American
Way of Life e/ou do Self Made Man e ao
som de Elvis Plesley, os EUA mantinham legislações segregacionistas contra
negros e asiáticos.
O
racismo colonial interno (Far West) logo iria se
globalizar com o imperialismo estadunidense. As alegações da supremacia branca
“cientificamente” sustentam o excepcionalismo (presunção da virtude) que, por
sua vez, está na raiz de noções de “nação indispensável”, “polícia do mundo”,
“império da liberdade” e “líder do mundo livre”. É esse direito autoconferido
que legitima as intervenções globais sob alegação de exportar modelos (de
mercado ou democracia).
Como
toda gramática ideológica, estão repletas de metamorfoses e, portanto, oscilam
conforme os contextos históricos e as dinâmicas de poder, visando a ocultar
e/ou legitimar interesses. O Perigo Amarelo também foi maleável e mobilizado
conforme os objetivos de seu tempo. Ora se voltou contra chineses, ora
indianos, ora japoneses. Os japoneses passaram da estigmatização racial à
admiração a partir do “ingresso no bloco ocidental”. O mesmo Japão que
mostraria que racismo não se refere apenas a cor da pele, pois perpetrou o mais
violento e virulento ataque imperialista à China. Para quem desconhece o assim
chamado holocausto esquecido, recomendo dois filmes sobre as agressões
imperialista e racista do Japão à China: Flores do Oriente e Campo
731 – Bactérias, a Maldade Humana.
Com
a rendição do Japão em 1945, surge um novo terror: em 1949, acontece a
Revolução Comunista Chinesa. À medida que a China se transforma num competidor
a partir da virada do século XX-XXI, a narrativa da Ameaça Chinesa passa a
entrelaçar ignorância, racismo e muito anticomunismo. Durante a pandemia de
covid-19, os chineses foram representados como fonte de ameaça biológica e
contagiosa para o Ocidente.
Sutis
e escancaradas, conscientes ou não, a Ameaça Chinesa é arrebatadora. Ora
resumindo a China pré-moderna ao “despotismo oriental”. Ora destilando clichês
a la
Guerra Fria de forma caricata como país “totalitário” – sem
que se conheça minimamente o funcionamento institucional do país. Mais comum
ainda é desacreditar os dados e fontes chinesas ou até fantasiar sobre as
consequências do domínio chinês sobre as comunicações através do 5G – que,
ironicamente, estão refém da vigilância estadunidense.
Assim,
as políticas estadunidenses de contenção da China, num contexto de erosão de
sua hegemonia e crescente competição internacional, tenderão a recrudescer a
linguagem do Império voltada a construir a imagem da China como grande ameaça,
mesclando da caricatura mais tola, passando pelo ódio racialista e culminando
no paranoico anticomunismo. [Artigo
de Diego Pautasso publicado originalmente em Outras Palavras em
26.01.23.]
Diego
Pautasso é
doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professor de Geografia do
Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) e professor convidado da Especialização
em Relações Internacionais – Geopolítica e Defesa, da UFRGS. Autor do
livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, ed. Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com
Somos do tamanho do que
enxergamos https://bit.ly/3Ye45TD
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