26 maio 2023

O peso do agronegócio

Significado e dimensões do agronegócio na economia brasileira

Há toda uma publicidade colocando o ator político que se autodefine como “agro” como uma espécie de campeão da economia em todos estes domínios: comércio externo, PIB, geração de emprego, arrecadação tributária e oferta de alimentos. No entanto, o que dizem os números?
Guilherme C. Delgado/Le Monde Diplomatique


A pergunta sobre as dimensões econômicas da economia do agronegócio no Brasil precisa sempre ser precedida pela elucidação do(s) significado(s) desse fenômeno de economia política, mas também de propaganda e marketing, que, por vários anos, se autoproclamou símbolo da totalidade, com claras pretensões míticas.
O leitor certamente tem curiosidade em conhecer as dimensões reais desse fenômeno – no comércio externo, no PIB, na geração social de emprego, na arrecadação tributária e na oferta dos alimentos da cesta básica salarial. Há toda uma publicidade colocando o ator político que se autodefine como “agro” como uma espécie de campeão da economia em todos esses domínios, ora apresentado como novo setor de atividades, ora como ator político estratégico, a ponto de dominar a pauta das políticas agrícola, fundiária e de comércio exterior por todo o século XXI, exer cendo clara hegemonia sobre sete períodos presidenciais (FHC II, Lula I, Lula II, Dilma I, Dilma II, Michel Temer e Bolsonaro).
Se olharmos para esse período histórico (século XXI), veremos que a principal característica desse sistema (de agronegócio) tem sido transformar o comércio exterior brasileiro em espaço privilegiado e protagonizado por bens primários que, nesses últimos mais de vinte anos, são valorizados sistematicamente pela política econômica de Estado (agrícola, comercial, financeira, tributária, fundiária e tecnológica). Em tais condições, produziu-se em duas décadas a elevação persistente das exportações totais brasileiras, que saltaram do nível dos US$ 50 bilh& otilde;es em 2000 para US$ 209,9 bilhões em 2020, elevando a posição brasileira nas exportações mundiais respectivamente de 0,8% para 1,2%.
Essa mudança no comércio exportador brasileiro se realizou pela especialização primária, expelindo produtos manufaturados e avançando significativamente, em especial na década de 2000, a participação dos “produtos básicos” na pauta exportadora, que saltaram de 25% do total em 2000 para 50% em 2020 (em números redondos).
Por outro lado, para uma economia como a brasileira, que teve suas exportações relativamente estagnadas na segunda década do século XXI, com crescimento médio anual de 0,6% ao ano – ao contrário da primeira década, em que esse crescimento foi de 13,5% ao ano –, a solução primário-exportadora funciona como uma espécie de droga viciosa, desagregadora do organismo integral sob vários aspectos. Custa muito caro em termos fiscais, já que o agronegócio exportador goza de benefícios excepcionais do Imposto de Renda (Cédula G) e não paga impostos de exportação e praticamente nenhu m tributo sobre o patrimônio (ITR).
Ademais, conta com o benefício oportuno da taxa cambial desvalorizada nas conjunturas de “vacas magras” na segunda década, além do presente de generosos subsídios de crédito rural, pagos pelo Tesouro, na forma da mais baixa taxa de juros.

Por seu turno, a política fundiária de Estado é frouxa o suficiente para permitir a valorização e ampliação do mercado de terras, sob condições de grilagem de terras públicas em sucessivos experimentos de “regularização fundiária”, à revelia do direito constitucional, em ondas datadas (MP n. 422/2008, convertida em lei; Lei n. 13.178/2015 sobre terra pública de fronteira; Lei n. 13.465/2017 e MP n. 910/2019, não convertida em lei).
Ao conceituarmos o agronegócio como um pacto de economia política, associando complexos agroindustriais integrados com a grande propriedade fundiária e o Estado planejador do lucro da produção e da valorização patrimonial1 – tendo em vista na atual quadra histórica gerar resultados comerciais externos superavitários como meta primordial –, temos aí uma aproximação significativa do fenômeno, ainda que com todas as limitações que estamos identificando.
Por outro lado, os resultados comerciais apontados têm serventia diretamente vinculada a outro fenômeno contemporâneo: financiar ou prover liquidez ao alto valor do déficit de “Serviços e Rendas Pagos ao Exterior”, de cerca de US$ 35 bilhões em média anual na primeira década, saltando para US$ 83 bilhões médios anuais na segunda década do século XXI (ver dados parciais da tabela).
Ocorre também na agricultura um fenômeno de crescimento dicotômico: um segmento (o agronegócio) é catapultado a crescer “a qualquer custo” dentro do escopo de sua meta de exportações primárias, para o que conta com sua taxa de lucratividade garantida e vinculada à exportação de mercadorias mundiais (commodities), enquanto o setor produtor de “não commodities” é tratado de forma discriminatória negativa. E não é preciso ser economista para prever que de tal arranjo se obterão recorrentes tensões inflacionárias dos alimentos da cesta básica e problemas conexos de insegurança alime ntar na escala macro social.
O crescimento econômico pífio do Brasil nesta segunda década (ao redor de 1% ao ano), portanto aquém do crescimento demográfico, levou a renda per capita a cair de US$ 11.338 em 2010 para US$ 6.838 em 2020. Isso acompanhado por trajetória muito elevada do desemprego aberto (ver tabela), de maneira que os saldos comerciais do comércio exterior, por razões já apontadas, não tiv eram poder de propagação da demanda efetiva e da renda, tampouco essa produção e rendimentos alimentaram circuitos distributivos virtuosos, pelo contrário.
Em síntese, do ponto de vista da economia convencional e dos indicadores macroeconômicos estilizados – PIB, nível de emprego, Saldo de Comércio Externo (Comercial e de Conta-Corrente) – e do nível geral de preços, a tabela para o período 2017/2022 revela desempenho macroeconômico desequilibrado em todas as macrovariáveis escolhidas, não obstante os saldos de comércio externo de mercador ias, puxados pelas exportações de commodities, que cumpriram seus papéis politicamente planejados.
Além dos indicadores econômicos, é preciso destacar um indicador que não aparece na macroeconomia convencional, mas é vital: a economia ecológica. Neste caso, precisamos visitar a métrica dos Acordos do Clima, que, pelos dados revelados por ocasião da COP-27 (Egito-2022), colocam o Brasil em sexto lugar na emissão mundial de dióxido de carbono (e gases equivalentes convertidos) na atmosfera, sendo 79% de sses gases emitidos do espaço rural. E, no caso específico, 49% desses 79% de emissões referidas ao espaço rural resultariam das queimadas rurais medidas entre as conferências de 2021 e 2022.
Os dados apurados pelo IPCC não foram contestados pelas fontes brasileiras – o Inpe, em particular, que ajuda a produzi-los –, mas sofrem a discriminação ideológica no sentido de desvinculá-los do desempenho da economia do agronegócio. A estratégia é atribuir as emissões a terceiros, supostos criminosos desmatadores de terras públicas sem conexão com a economia real. No entanto, a his tória real da grilagem e das “regularizações fundiárias” conexas não ajudam a fazer crer nessa versão fantasiosa. Mas seu contrário sim, que a política fundiária de Estado, juntamente com a política agrícola, continua funcionando nas duas últimas décadas como alavanca principal para a piora da situação brasileira relativa à degradação de seu espaço rural.

Sugestões ao novo governo 

Não há dúvida razoável de que, seja pelos resultados econômicos convencionais, seja pelos indicadores de economia ecológica sobre os Acordos do Clima e vários outros, cujo espaço aqui não nos permite dissecar, o sistema de agronegócio e particularmente sua economia real precisariam passar por verdadeira regulação para a transição ecológica, que no caso em apreço afetariam radicalmente as políticas agrícola e fundiária de Estado. Há em especial dois vetores de política pública que podem (ou não) tornar o novo governo, em sua política ambiental, já anunciada internacionalmente, coerente com suas políticas agrícola e agrária, tornando-a eficaz. O primeiro vetor a que estou me referindo é o chamado Plano Safra Agropecuário – 2023/2024, o primeiro do governo Lula, que, para sinalizar a transição ecológica, não pode repetir o padrão tendencioso a que nos referimos anteriormente. Ele deve, contudo, abrir efetivo caminho para a segurança alimentar e as inovações ecológicas, algo feito muito embrionariamente pelo governo Lula em 2003, tendo sido abandonado há quase uma década.
O segundo vetor, o da política fundiária, contou recentemente com uma grande vitória jurídica no STF, infelizmente mantida em absoluto sigilo na comunicação pública ou até banalizada no entendimento correto da decisão. Pois, como vimos no corpo deste artigo, são as “regularizações fundiárias” sobre terra pública, constitucionalmente ilegítimas, fontes da macrogrilagem de terras públicas, em geral precedidas por queimadas, tráfico de madeira e/ou de minérios de alto valor, que ficariam legalizadas nessas pretensas “regularizações”. Agora, por meio da deci são do STF – seis anos depois da ADIn sobre terra pública de fronteira (ADIn n. 5.623/2016), que a provocou, sobre desconformidade constitucional da Lei n. 13.178/2015 –, criou-se uma jurisprudência geral sobre regularizações fundiárias sobre terras públicas em geral, anulando os dispositivos irregulares da referida lei, mas principalmente estabelecendo critérios gerais equivalentes para outras alienações de terra pública, a serem obrigatoriamente seguidas pela política fundiária à frente, sem prejuízo das impetrações de nulidade de normas do passado em desconformidade com os textos constitucionais regradores.
Concluindo, o governo Lula dispõe no momento de duas senhas importantes para mudar sua política agrícola e fundiária, tornando-as coerentes entre si e com as políticas ambiental e de segurança alimentar. Uma é aparentemente mais fácil – a política agrícola, que depende apenas do Executivo, mas cuja tradição de captura pelo sistema de agron egócio nos deixa em dúvida. A outra é o acórdão unânime do STF (28/11/2022) em plena vigência, que permite desde já remodelar as políticas fundiárias geridas pelo Incra, Funai, ICMBio, SPU [Secretaria do Patrimônio da União] e AGU, tornando-as coerentes com o princípio da conformidade constitucional do referido acórdão unânime do STF.

 
*Guilherme C. Delgado é pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e membro da Direção Colegiada da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
 
1 Para uma conceituação rigorosa da economia do agronegócio, ver, de minha autoria, Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2012, p.89-93.
Arcabouço fiscal: o tamanho da conquista parcial https://tinyurl.com/32bazmxh

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