24 maio 2023

Racismo na Espanha

Por que racismo nos campos da Espanha é mais escancarado que em outras ligas europeias

Crescimento de casos nas arquibancadas crescem graças à impunidade e ao crescimento político da extrema direita que tem ligação com os ultras
Por Carol Knoploch e Tatiana Furtado/O Globo

 

O atacante do Real Madrid Vinicius Júnior tem sido o alvo preferencial de ofensas racistas ao longo da temporada do Campeonato Espanhol. Infratores costumam chamá-lo de “macaco”, imitar sons e gestos simiescos e desejar sua morte. Não é à toa. O atacante brasileiro tem colocado o dedo na ferida e escancarado uma questão cultural sempre jogada para debaixo do tapete.

Desta vez, parece não ser mais possível continuar negligente. Dois dias depois do caso que repercutiu em todo o mundo, as autoridades espanholas se mexeram diante da imagem arranhada. Ontem, a polícia deteve um total de sete pessoas suspeitas de crimes de injúria racial e ódio contra o atacante brasileiro. Contudo, os três torcedores do Valencia, entre 19 e 21 anos, foram liberados após prestarem depoimento e terão de comparecer ao tribunal quando solicitado. Já os quatro suspeitos ligados ao boneco que representava Vini Jr. enforcado sob uma ponta de Madri, em janeiro deste ano, antes do jogo entre Real e Atlético, foram mantidos presos.

—A cultura do esporte diz que os desportistas têm que aceitar todos os insultos vindos das arquibancadas. O Vinicius Júnior diz não, ele levanta a voz. Ele tem consciência do seu papel como atleta de elite negro. Isso incomoda, gera mais rejeição a ele e aumenta exponencialmente os insultos — diz o historiador português e autor de livros sobre o futebol europeu, Miguel Lourenço.

Muitas manifestações

Ao forte discurso de Vini Jr. em suas redes sociais nos últimos dias uniram-se inúmeras manifestações de entidades, atletas, governos e clubes. Os jogos de ontem da rodada do Espanhol (Real Sociedad x Almería, Celta x Girona e Valladolid x Barcelona) tiveram faixas com os dizeres “Racistas, fora do futebol” estendidas pelos atletas das duas equipes, o que deve seguir em todos os jogos da rodada. A CBF decidiu transformar o amistoso do Brasil contra a Guiné, dia 17 de junho, em Barcelona, num marco antirracista com a presença do atacante. Em São Paulo, membros de movimentos negros e aliados se reuniram em frente ao Consulado da Espanha para um ato em solidariedade a Vini Jr. e de cobrança ao país europeu.

Vinicius Júnior pode jogar

Mas, ao contrário do jogador, há um cuidado em apontar a Espanha ou determinada torcida como racista. O técnico do Real, Carlo Ancelotti, recuou após dizer que toda a torcida do Valencia proferiu ofensas, mas foi enfático na entrevista coletiva antes do jogo desta quarta-feira, contra o Rayo Vallecano, ao pedir “medidas drásticas”.

Embora tenha sido expulso na última rodada, o atacante brasileiro está liberado para jogar este confronto. O Comitê de Competição da Federação Espanhola de Futebol decidiu anular sua suspensão por entender que o VAR forneceu imagens parciais da confusão entre ele e Hugo Duro, do Valencia (não exibiu o momento em que o espanhol aplica um mata-leão no brasileiro). Em outra decisão, o órgão determinou que o setor sul do Mestalla, de onde partiram as ofensas para Vini no domingo, ficará fechado por cinco jogos. O Valencia ainda foi multado em 45 mil euros. A decisão contém relato do árbitro que descreve os xingamentos feitos ao camisa 20 do Real Madrid:

 “Vinicius apontou um dos torcedores na arquibancada e disse: ‘me chamou de macaco’, fazendo gestos com as mãos. Enquanto isso acontece, outros cânticos são proferidos, entre eles “Madridistas filhos da puta”. Um torcedor grita “P... negro, é um idiota”, “Me cago em seus mortos, filho da p...”, “Vinicius idiota”, “P... negro filho da p...”, “Vinicius cachorro, filho da p...”, “Macaco, você é um p... macaco”.

Para o jornalista da Reuters Fernando Kallás, que mora e trabalha na Espanha há 13 anos, "a Espanha está anos atrás do debate mundial que existe hoje sobre o racismo".

— São dez denúncias, dez crimes e esse é o mais recente. O que aconteceu no domingo foi tão inacreditável e tão impactante que obrigou, finalmente, a Espanha a começar olhar para o próprio umbigo e perceber que existe um problema aqui. E nesta segunda-feira vi este debate crescer bastante — conta o brasileiro, que lembra que existem ferramentas na Justiça do país para combater o crime de ódio. — Existe o crime de ódio no Código Penal espanhol, com pena de um a quatro anos de cadeia, e precisa ser aplicado. E existe no Estatuto da Federação espanhola, em casos muito graves, a prerrogativa de o clube perder mando de campo, jogar a temporada inteira com portões fechados, perder pontos. E a pergunta que se faz é essa: por que não foi usado nestes casos?

Casos de racismo e a Lei Bosman

Os episódios vividos por Vinicius Júnior se somam a um sem número de casos de racismo nos estádios espanhóis nos últimos 30 anos. Apesar de a presença de jogadores negros na Espanha datar do início do século passado, o boom aconteceu, de fato, após a Lei Bosman, de 1995. A nova legislação foi responsável pela abertura do mercado europeu a atletas de todos os continentes e contou com forte entrada de africanos e sul-americanos.

Nos anos 1990, o goleiro nigeriano Wilfred Agbonavbare, do Rayo Vallecano, foi alvo constante de racismo. Após impedir a vitória do Real Madrid, no Santiago Bernabéu, ao defender um pênalti, ouviu gritos de "Ku Klux Klan" da torcida merengue. Em outros confrontos com o principal clube da capital, era comum ouvir o coro de "negro c…, vai colher algodão”. Já nos anos 2000, o camaronês Samuel Eto'o, do Barcelona, ameaçou sair de campo numa partida contra o Zaragoza por causa dos insultos racistas. Os companheiros e o árbitro o convenceram a ficar.

—Faz parte da ideia de que meu negro não pode ser insultado, mas posso insultar o negro dos outros — diz o historiador português, acrescentando que esse tipo de ofensa é próprio do ambiente permissivo do futebol. — É o tribalismo do futebol. Ali é um ambiente onde há uma verdadeira divisão tribal. Essas ofensas (macaco, gestos, sons) dificilmente acontecem nas ruas, no dia a dia na Espanha ou na Europa. Ali também existe racismo, claro, mas está nas pequenas coisas e nos detalhes. Esse comportamento xenofóbico e racista se junta com o comportamento tribal do futebol.

Crescimento da extrema-direita e ligação com os ultras

O historiador aponta, no entanto, um crescimento do racismo nos jogos do Espanhol a reboque das mudanças sociais da última década. A crise europeia aumentou a rejeição aos imigrantes e, como consequência, veio o crescimento da extrema-direita na Espanha, no caso o partido VOX, a terceira maior força política do país, que tem braços entre os ultras nas arquibancadas com discursos xenofóbicos e racistas.

— O VOX é herdeiro político do franquismo e abriu-se a caixa de pandora nos últimos anos. Até pouco tempo, o clima político não permitia essas atitudes, pois podiam perder algo se mostrassem a verdadeira face. E o auge do VOX (ganhou força nas eleições de 2019) coincidiu com o aumento de ataques racistas nas arquibancadas — diz.

Guilherme Freitas, pesquisador e doutorando na Universidade de São Paulo e autor do livro "As seleções de futebol da União Europeia", sobre questões de identidade, migração e multiculturalismo na Europa por meio das seleções de futebol, casos de racismo nos estádios da Espanha são comuns principalmente por causa da conivência da La Liga.

Alemanha e Inglaterra estão um passo à frente

Embora durante todo o jogo gritos de "mono" (na tradução livre significa "macaco" em espanhol) pudessem ser ouvidos — o árbitro não interrompeu a partida. O jogador identificou um dos torcedores que o ofendeu e precisou ser segurado pelos companheiros. Países como Alemanha, Inglaterra e Holanda, por exemplo, tiveram um trabalho maior de conscientização e enfrentamento da questão e possuem melhores protocolos de combate.

— Outras ligas como a da Alemanha ou a inglesa jogam duro com casos assim e os próprios clubes colaboram com a identificação dos racistas e os punem. Há de fato punição aos torcedores, que podem responder a processos, pagar multas ou ficar impossibilitados de entrar nos estádios de futebol. Nos estádios da Alemanha, inclusive, há avisos sobre punições em casos assim — afirma Guilherme, que pontua que neste episódio, os clubes só foram se manifestar após repercussão negativa. — Este era um caso em que o jogo deveria ter sido interrompido. E a arbitragem, branda e conivente, prosseguiu. Vejo que o racismo é tratado na Espanha como algo cultural e de difícil combate. E assim não se dá o primeiro passo.

Para o Álvaro Pereira do Nascimento, historiador e professor da UFRJ, mesmo no futebol, é preciso interesse político para se aplicar as leis contra o racismo. O pesquisador afirma que hoje em dia, com o auxílio da tecnologia está mais fácil identificar os torcedores racistas e aplicar as leis existentes em cada país.

— O caso do Vinicius Júnior não é o primeiro nem o último e vai continuar acontecendo durante muito tempo ainda. Isso porque faltam leis ou se elas existem faltam policiamento ou interesse político para fazer com que as leis funcionem. Hoje já existe tecnologia de identificação de indivíduos, por exemplo, para auxiliar. Eu entendo que atos racistas como este que ocorreu com o Vinicius Júnior acontecem todos os dias em todas as federações. Algumas são mais sensíveis, como o caso da Alemanha — comparou. — O diferencial agora é que os negros estão mais conscientes também e o Vinicius Júnior, além de ser um jogador excelente, é um indivíduo muito feliz, alegre, um cara que esbanja felicidade, realizações. O que faz com que muita gente que se sente infeliz se revolte contra ele. Só que além disso, ele é um homem que está consciente da sua posição racial e isso incomoda mais do que aqueles que não tem uma consciência sobre o racismo. E ele tem isso muito claro e está militando. Ninguém deve ser trato desta forma.

Por que as pessoas acreditam em informações falsas? https://bit.ly/3nBrBfL

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