17 novembro 2006

Como um ourives

Como movimentos ágeis, põe o queijo, dobra a massa, enrola numa folha de bananeira e a oferece ao freguês:

- Pronto, doutor, está no ponto. E não é para me gabar não, mas duvido quem faça melhor.

A tapioqueira parece se orgulhar do que faz, com destreza e esmero. Que nem o ourives a lapidar uma pedra preciosa.

A gente saboreia a tapioca – uma delícia! – aceitando aquelas palavras como uma lição.

Importa, sim, realizar cada tarefa do cotidiano com igual esmero. Assim como lapidar com o olhar, a palavra e o gesto as relações de amizade. Que nem o ourives – ou a tapioqueira ciosa do seu ofício.

Um comentário:

  1. Anônimo7:23 PM

    Caríssimo Luciano Siqueira,

    A propósito das suas belas e sábias palavras:

    "Importa, sim, realizar cada tarefa do cotidiano com igual esmero. Assim como lapidar com o olhar, a palavra e o gesto as relações de amizade."

    Deixo aqui neste espaço "virtual" um pouco do poeta português Eugénio de Andrade.

    "É urgente o amor.
    É urgente um barco no mar.

    É urgente destruir certas palavras,
    ódio, solidão e crueldade,
    alguns lamentos,
    muitas espadas.

    É urgente inventar alegria,
    multiplicar os beijos, as searas,
    é urgente descobrir rosas e rios
    e manhãs claras.

    Cai o silêncio nos ombros e a luz
    impura, até doer.
    É urgente o amor, é urgente
    permanecer."

    (Eugénio de Andrade)


    "As palavras que te envio são interditas
    até, meu amor, pelo halo das searas;
    se alguma regressasse, nem já reconhecia
    o teu nome nas suas curvas claras.

    Dói-me esta água, este ar que se respira,
    dói-me esta solidão de pedra escura,
    estas mãos nocturnas onde aperto
    os meus dias quebrados na cintura.

    E a noite cresce apaixonadamente.
    Nas suas margens nuas, desoladas,
    cada homem tem apenas para dar
    um horizonte de cidades bombardeadas."

    Eugénio de Andrade


    "Passamos pelas coisas sem as ver,
    gastos, como animais envelhecidos:
    se alguém chama por nós não respondemos,
    se alguém nos pede amor não estremecemos,
    como frutos de sombra sem sabor,
    vamos caindo ao chão, apodrecidos."


    "De palavra em palavra
    a noite sobe
    aos ramos mais altos

    e canta
    o êxtase do dia."



    As Amoras

    "O meu país sabe as amoras bravas
    no verão.
    Ninguém ignora que não é grande,
    nem inteligente, nem elegante o meu país,
    mas tem esta voz doce
    de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
    Raramente falei do meu país, talvez
    nem goste dele, mas quando um amigo
    me traz amoras bravas
    os seus muros parecem-me brancos,
    reparo que também no meu país o céu é azul."

    Eugénio de Andrade ("O Outro Nome da Terra")



    Surdo, Subterrâneo Rio

    Surdo, subterrâneo rio de palavras
    me corre lento pelo corpo todo;
    amor sem margens onde a lua rompe
    e nimba de luar o próprio lodo.

    Correr do tempo ou só rumor do frio
    onde o amor se perde e a razão de amar
    --- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
    para onde vais, sem eu poder ficar?

    Eugénio de Andrade

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