Do Blog de Waldir Pedrosa, uma crônica que reúne protesto e leveza.
A última loja do shopping cerrara suas portas naquele inesquecível dia vinte e três de dezembro. A praça da alimentação ainda exalava o odor de frituras misturado ao ranço do lixo que era recolhido pelos encarregados da limpeza.
O movimento de caixa das lojas e as mercadorias tinham sido conferidos. Os últimos retoques de arrumação executados para o próximo dia. Em pequenos grupos, os comerciários saíam pela passagem principal, após serem revistados pelos seguranças. Quando se dirigissem à parada de ônibus, já seria madrugada do dia vinte e quatro de dezembro, véspera de Natal.
Os seguranças revisam as portas de saída, comunicam-se com a central e partem após receberem pelo rádio a mensagem de que o alarme geral seria acionado.
Não resta ninguém no complexo comercial de ruas particulares e climatizadas. Apenas eu, o mais antigo comerciante lá instalado, que tendo obtido uma licença especial para pernoitar naquele dia em meu estabelecimento, pude afiançar neste relato os detalhes que foram vistos por estes olhos. Perdoem-me como o descrevo, pois outrora fui repórter, sendo hoje unicamente o dono de uma tabacaria. Portanto o caso eu conto.
Na fachada da gaiola mercantil reina o anúncio fosforescente de gás neon: NESTE NATAL ATÉ PAPAI NOEL VAI GANHAR PRESENTE.
No interior do shopping, o inusitado está se preparando para ocorrer.Sobre as mesas e cadeiras da praça da alimentação uma plêiade de seres de matéria plástica se acotovela silenciosamente. São barbas brancas, botinas pretas, gorro e roupas de frio. A indumentária que portam é vermelha com detalhes brancos no debrum das mangas, na gola e no pompom branco que bandeia na extremidade do gorro. Entre eles ouço o comentário de que usam aquele uniforme desde o tempo em que se prestaram a propagandear a coca-cola.
Silenciosamente surgem muitos outros como se fora um enxame de abelhas atraídas por algum sinal desconhecido. Seus passos são macios como a lã, os talhes são variados. Naquele instante afloram uns maiores pelas escadarias, desabrocham outros esquisitos pelos elevadores.
Não se vêem mulheres, e isto confere à esdrúxula convenção, se assim posso chamar, um ar quase cardinalício. Em certo momento, parece que todos os convocados já ali se encontram, visto que há quinze minutos não surge ninguém. Na praça apinhada de Papais Noel reina um silêncio conspirador.Repentinamente a mudez é interrompida por um tipo diferente, que suponho ser da mesma hoste, vestido à paisana. Um esquálido Papai Noel, de tez morena, barba branca pixaim, gorro similar ao do bloco Olodum da Bahia de São Salvador, trajando camiseta amarela, bermuda cáqui abaixo do joelho e sandálias de dedo. Junto a ele, uma senhora de longas cãs, enroladas em espiral, fixadas na cabeça através de uma marrafa cor de chifre. Veste uma túnica branca que a recobre até os pés. Ambos postam-se à frente dos demais e o homem começa a falar:
─ Chega! Chega! Vamos deixar de ser coca-cola, vamos deixar de enganar, vamos parar com esta fábrica de desejos que só provoca tristeza, banzo, agonia.Agora vai ser diferente: a nossa roupa tem que ser comum. Presentes e lembranças têm que ser para a alma. Fica admitida a mentira e a ilusão.
─ A mentira? Interrogam em coro os presentes.
─ A mentira sim!
Não às propagandas enganosas, subliminares, afetando emoções, desejos e opiniões. Mentiras que engrandecem, que nascem das verdades, que fazem refletir, viajar e sonhar. Mentira necessária para viver e aprender; mentira que acalma, emociona, faz chorar, rir, deslumbrar. Mentira de amenizar a dor e reforçar a realidade. Mentiras curtas e longas, mentiras tiradas da vida e da cabeça de contadores, ou melhor, tecelões de ficções de toda parte.
Se todos vocês concordarem, a partir de hoje mudaremos de nome e de ofício. Doravante onde trabalha o homem também trabalhará a mulher. Esta cara de celibatário não é a nossa cara. Seremos do nosso jeito! Uma cara qualquer, em qualquer canto do mundo. Presentearemos palavras sem dono e sem patrocínio, aprendidas de cor e salteado.
Contaremos história a crianças grandes ou pequenas, jovens ou idosas, ricas ou pobres, boas ou enfermas... E elas continuarão contando o que aprenderam, o que inventaram...Onde há língua portuguesa nos chamarão contadores de causos, casos ou histórias. Onde há castelhano nos apelidarão cuenta cuentos. Daí em diante incendiaremos todas as línguas e ouvidos.
Voaremos da página do livro aos seus personagens; dos personagens ao coração dos escritores e deles ao ouvido sequioso de escutar. Em João Pessoa, no cair da tarde de sábado, escutaremos as invenções do Clube do Conto da Paraíba que se reúne para partilhar contos com a maior empolgação. Seremos porta-vozes das suas fantasias.
E tudo foi discutido votado e aprovado. Daí em diante, não posso descrever mais detalhes, pois, sem pressentir, adormeci um sono profundo e acordei-me às oito horas da manhã, na hora de abrir o shopping.
Quando chegaram os seguranças, os lojistas e os comerciários, a praça da alimentação encontrava-se coberta por roupas, gorros, cintos e botinas de variados tamanhos e não havia pegadas de quem por lá tivesse passado. Nem eu posso supor como acontecera. Nas lojas não restava sequer um papai Noel. Uma placa despencava da fachada do prédio.
As crianças dos bairros de Mangabeira, Bancários e adjacências, na manhã do domingo relataram terem ouvido belas, comoventes e suspirosas histórias. Algo semelhante foi registrado em Portugal, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola, Timor Leste, Espanha, México, Argentina, Colômbia, Venezuela, Chile, Peru, Bolívia, Cuba, República Dominicana, Paraguai, Uruguai, Equador, Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Panamá, Honduras, El Salvador, Porto Rico e na Guiné Equatorial .
De tudo que já narrei, confesso não ter vivido coisa igual! Como no dito popular:
O caso eu conto
Como o caso foi
Porque homem é homem
E boi é boi.
(Dito popular do Nordeste)
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