A vida por um fio
Já se vão uns bons vinte anos, esse amigo de vocês exercia o mandato de deputado estadual colado na luta do povo. Num cotidiano de conflitos, passeatas, audiências públicas e reuniões, pôde anotar fatos e lições da vida simples e atormentada dos que quase nada possuem.
Certa vez, numa área de ocupação, no Ibura, na periferia do Recife, o problema era conquistar fornecimento de água e de energia elétrica. A água era clandestinamente obtida de um cano mestre nas proximidades. E gambiarras mal feitas e arriscadas garantiam a luz de cada barraco. O inexperiente deputado, tomado de certa dose de entusiasmo e de inconseqüência, botou pra quebrar:
- Pois é, minha gente. Não querem nos fornecer a energia elétrica, nem água, porque vocês consomem pouco e não dão lucro. Mas essas gambiarras pelo menos têm uma coisa boa, livram vocês de pagarem a conta no fim do mês!
- Não é coisa boa, não, deputado. A gente prefere pagar a conta, porque assim fica com um documento pra provar que a gente existe e tem direito a ficar aqui.
A advertência feita por umas das lideres da ocupação, mulher de meia-idade, um tanto obesa e face enrugada, abriu nossos olhos para a elementar serventia da conta de luz: a prova de cidadania.
Pois bem. Há alguns dias atrás, a Folha de S. Paulo noticiou a morte de uma aposentada de 53 anos, em Fortaleza, Ceará, porque o direito elementar ao fornecimento de energia elétrica lhe foi negado por inadimplência.
Maria Luiza Bezerra, a vítima, sofria de insuficiência respiratória e sobrevivia com a ajuda de um respirador e de um inalador elétrico. Apesar de ter o seu nome incluído num cadastro de 150 pessoas no Estado que dependem da energia para viver e que, mesmo em caso de inadimplência, não poderiam sofrer um desligamento – informa a reportagem – funcionários da Coelce (Companhia Energética do Ceará) - empresa pertencente ao grupo espanhol Endesa - fizeram o corte por causa de uma dívida de apenas R$ 204.
Um inquérito policial foi instaurado pelo 11º Distrito Policial, a pedido do Ministério Público, para apurar se houve erro e investigar os responsáveis pela morte. A Coelce informou que constituiu uma comissão de investigação. Algum funcionário – mero executor da norma administrativa -, feito bode expiatório, pagará caro, ou não, pelo ocorrido. E a empresa certamente manterá a norma de cortar a luz de pobres coitados devedores de míseros valores que nem de longe comprometem seus alentados lucros.
A vida humana é que não tem valor quando se passa ao controle privado serviços essenciais de interesse público com a distribuição de energia elétrica. Mesmo quando se tem uma conta de luz ou de água para provar “que a gente existe e merece ficar aqui”, como dizia a líder comunitária do Ibura.
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