Cedo demais para esquecer
Na CartaCapital, por Luiz Gonzaga Belluzzo
O terremoto financeiro teve caráter privado, para a perplexidade dos badalados analistas do mercado. Conta paga pelo sistema, para evitar um crash global. Viva o moral hazard!
No segundo semestre de 1996, nuvens negras começaram a se acumular nos céus da Tailândia, um tigre de terceira geração, onde o capital eficiente dedicou-se, entre outras estrepolias, à farra das bolsas e dos mercados imobiliários, prestando inestimável ajuda à valorização do baht e à ampliação do déficit em conta corrente à beira dos 9% do PIB. Em meados de 1997, as autoridade tailandesas subiram as taxas de juro para 1.400% ao ano, na tentativa de conter o ataque especulativo. Não conseguiram: a moeda tailandesa despencou.
A crise espalhou-se pela Ásia. Em seqüência infernal, as moedas começaram a ceder. Chegou a Hong Kong. Para defender o seu dólar, as autoridades locais botaram as taxas de juro na lua. Na Coréia, os empréstimos de curto prazo em moeda estrangeira, freneticamente intermediados pelos bancos locais, deram no pé. Fugiram, a despeito dos bons “fundamentos” fiscais da economia e dos esforços para evitar a desvalorização do won.
O governo americano e o FMI haviam subestimado a gravidade dos problemas financeiros que então devastavam as economias da Ásia. O diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, dizia, impávido, que “o modelo asiático já cumpriu o seu papel e está superado”. Mais do que qualquer outra coisa, o globocrata quis dizer que se tratava da crise de um modelo de desenvolvimento, com muito Estado, bancos emprestando adoidado, economias protegidas e outras mazelas do gênero.
Já o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, no alvorecer da turbulência cambial e financeira, veio a público para ameaçar que “não gastaria um níquel para salvar investidores e credores privados”. Como a trapalhada asiática era fruto da ação de investidores e credores privados, sobretudo americanos, não se sabe bem o que o secretário Rubin pretendia dizer.
Em meio às festividades natalinas do ano da graça de 1997, os Estados Unidos e o FMI trataram de providenciar um pacote de emergência destinado a impedir a moratória coreana. Papai Noel vacilou, mas não faltou.
Os analistas mais badalados da finança globalizada estavam perplexos com o caráter privado da crise. É possível adivinhar o que passava nas cabeças como a do secretário Rubin: os mercados privados são “eficientes” e, portanto, os agentes usam de forma adequada a informação disponível e decidem racionalmente. Sendo assim, os episódios de descontrole financeiro desse porte só podem ser explicados por desmandos dos governos. Maldição: os fundamentos fiscais da Coréia estavam em ordem, como atestam os dados do FMI, que, diga-se, poucos meses atrás, derramou encômios à situação macroeconômica do combalido tigre, sublinhando as virtudes da taxa de poupança agregada.
Diante da realidade macroeconômica coreana, esses senhores encontraram remédio para a fragilidade de suas hipóteses. “Crony Capitalism”, capitalismo de compadres, era a expressão que movia os lábios dos experts ocidentais: a catástrofe financeira era fruto das relações promíscuas entre os bancos, os conglomerados (chaebol) e os governos.
Um regime de crédito dirigido e ativo sustentou, de fato, o espetacular e bem-sucedido processo de industrialização e de crescimento econômico do Japão e da Coréia (assim como os dos demais asiáticos e da China de depois das reformas de 1978) durante as três últimas décadas. É difícil sustentar o ponto de vista de que a gestão econômica nesses países, particularmente a forma de financiamento da economia, tenha respeitado as normas de impessoalidade, transparência e eficiência microeconômica. Muito ao contrário: prevaleceram as prioridades dos Estados nacionais, perseguidas à custa de favorecimentos e arbitrariedades. No caso da Coréia, essas tropelias eram praticadas pelo regime militar, sobretudo nos tempos do grande timoneiro da industrialização, o general Park Chung Hee.
Apesar disso, Coréia do Sul, Taiwan e Japão, nos tempos da Guerra Fria, sempre foram tratados como baluartes do mundo livre na Ásia. Por isso, os Estados Unidos, durante um bom tempo, não só abriram seus mercados, como fizeram vista grossa para o nacionalismo econômico, o que incluía políticas industriais seletivamente protecionistas e fortes incentivos às exportações. Nos anos 70, Richard Nixon concedeu as bençãos democráticas e os favores do capitalismo para a China comunista.
A política econômica de Reagan no início dos 80 – com o dólar supervalorizado, os enormes déficits orçamentários e nas contas de comércio – deu ainda mais fôlego ao crescimento dos países da Ásia. Esse foi o período dos grandes superávits comerciais japoneses, coreanos e taiwaneses e o primeiro momento do processo de internacionalização dos chaebols coreanos, como Samsung, LG, Daewoo, Hyundai. Beneficiários das enormes reservas em dólar acumuladas ao longo dos anos, os bancos japoneses apareceram no espaço das finanças globais como rivais dos grandes bancos americanos e europeus.
Depois do famoso acordo do Plaza, celebrado em setembro de 1985, os Estados Unidos resolveram reverter a brutal valorização do dólar, que já havia causado danos quase irreparáveis à sua indústria. Foi dado um sinal claro de que a festa estava prestes a acabar. Os japoneses foram obrigados a engolir a endaka, uma forte valorização do iene, o que, por um lado, afetou suas exportações para a área de predominância da moeda americana e, por outro, causou sérios prejuízos para os bancos, corretoras e seguradoras que carregavam em suas carteiras ativos em dólar.
Nesse momento, intensificam-se as pressões para a liberalização comercial e financeira do Japão e dos dois tigres asiáticos de segunda geração, Coréia e Taiwan. As investidas contra o protecionismo coreano e japonês datam já do fim dos 70, envolvendo restrições voluntárias de exportação, cotas e sobretaxação de produtos com suspeita de preços subsidiados.
Na segunda metade dos 80, o Japão, os tigres e dragões da Ásia – tanto por razões internas (acumulação de excedentes financeiros pelas grandes empresas japonesas que se tornaram aplicadoras líquidas) quanto externas (reservas em moeda forte e exigências dos Estados Unidos) – enveredaram pelos caminhos da abertura e da desregulamentação dos serviços financeiros. Nessa aventura, foram acompanhados pelos vizinhos e parceiros.
A professora Meredith Woo-Cummings da Northwestern University, em magistral artigo sobre a liberalização dos mercados na Ásia, mostra que a internacionalização financeira, em vez da maior eficiência na alocação de recursos, levou sim à especulação com ativos reais e financeiros, à aquisição de empresas já existentes, ao sobreendividamento e, finalmente, à fuga de capitais. Os bancos japoneses, acostumados às operações de crédito “papai e mamãe” com as empresas, amparados pelas práticas de redesconto do banco central, deitaram e rolaram nos mercados imobiliários e nas bolsas de valores da Tailândia, Indonésia e Malásia.
O economista da Unctad, Yilmaz Akyuz, em um pequeno texto (Causas e Origens da Crise Financeira Asiática) cuidou, três anos depois, de reavaliar as explicações sobre a crise asiática de 97/98. Diante da diversidade de situações macroeconômicas e, sobretudo, da excelência dos desempenhos fiscais – os orçamentos apresentavam superávit primário e as relações dívida/PIB eram espantosamente baixas –, Akyuz sustenta que abertura financeira e rápido ingresso de capitais eram os únicos fatores comuns na desdita de todos os países.
O governo dos Estados Unidos e o FMI não tiveram outra opção senão sancionar as expectativas dos mercados, de que os desequilíbrios incorridos por administradores de carteiras e grandes financiadores seriam amparados por dinheiro oficial. A alternativa era a contaminação de outras praças financeiras e o agravamento do crash global. Essa história de “deixa quebrar” é muito boa quando se trata do vizinho. Viva o moral hazard.
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ResponderExcluirmasimundus semikonecolori