Coluna semanal no portal Vermelho:
Nada pessoal
Luciano Siqueira
O torturador entra na sala e pergunta o meu nome, num inglês arrastado, talvez tentando se passar por agente da CIA para me intimidar. Permaneço mudo. Ele insiste, sem êxito. Até que resolve falar em português, com claro sotaque carioca:
- “Olha, cara, estrategicamente você serão vitoriosos. Vocês estão vencendo a guerra do Vietnã. O mundo caminha para o socialismo. Mas taticamente você e seus companheiros presos estão derrotados. Não querem cooperar, estão fodidos. Só sairão vivos daqui se eu quiser. Você perdeu a guerra!”
Seminu, algemado e preso a uma cadeira, encapuzado, o corpo marcado por hematomas e ferimentos de muitos dias de pau-de-arara, choque elétrico e espancamento, a cada palavra crescia em mim uma força interior que o bandido não percebia. – Derrotado porra nenhuma! Quem disse que estou aqui sozinho, que meus companheiros estão sós? Aqui estamos por nossa geração, defendemos uma causa, lutamos pela Liberdade e pelos direitos do povo! Sonhamos com o socialismo! Esses merdas poderão nos matar, porém nunca nos derrotarão!, discursava silenciosamente.
Passados mais de trinta anos, finda a ditadura e no segundo governo Lula, de muitas contradições mas de inegáveis avanços, derrotado foi o torturador e seus comparsas. Nós vencemos.
A cena vivida numa sala de torturas do DOI-CODI nas antigas dependências do IV Exército, próximo ao Parque 13 de Maio, no Recife, em maio de 1974, relembrada numa conversa em meu gabinete com estudantes cuja curiosidade extrapolava os limites do trabalho escolar a respeito dos chamados anos de chumbo, provocou num deles o comentário:
- Depois de ter acontecido tudo isso, a gente não entende por que o senhor não guarda mágoa nem amargura, demonstra muita serenidade.
- Porque não era nada pessoal, a prisão e as torturas foram parte da luta do povo brasileiro que resistiu como pôde ao regime militar.
O diálogo está entre as muitas notas arquivadas no notebook ao longo do ano que se passou e que nesses primeiros dias de 2008 sobrevivem à faxina (que destina à lixeira muita coisa superada pelo tempo) porque é parte dos muitos encontros e realizações, como diria Rainer Maria Rilke, que teimam em permanecer vivos na memória.
Vivos e úteis – como lição de vida e de política. Pois se agora não temos que enfrentar tanques, baionetas e torturadores, há outros obstáculos e pressões igualmente desafiadores que é necessário arrostar com espírito público, jamais como questão pessoal, nas grandes batalhas que se apresentam em 2008. Sem perder a serenidade jamais.
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