Procura-se o culpado
Luciano Siqueira
Toda derrota é assim: reclama um culpado, real ou mesmo um simples e indigitado bode expiatório. No futebol, na vida.
Quando atendia crianças em ambulatório de pediatria era muito comum, entre queixas e sinais clínicos, ouvir: “Doutor, eu não tive culpa”, como se a febre, a coriza, a tosse, a dor abdominal ou mesmo o pequeno acidente doméstico tivessem necessariamente um responsável além das contingências da vida. “Minha senhora, toda criança saudável coleciona cicatrizes”, quanta vez tive que argumentar.
Talvez seja pela nossa cultura ocidental cristã, que cultua a culpa (e o pecado) como ante-sala do arrependimento e da remissão. Se não houvesse pecado e culpa, para que o perdão?
Agora imagine isso no futebol, essa paixão sem limites que contamina nove em cada dez brasileiros. Pior: não se trata de um campeonato qualquer, é da Copa do Mundo que se fala, essa coisa monstruosa que a cada quatro anos põe em causa o talento, a garra e o patriotismo de onze atletas e a sapiência e a capacidade de comando de um técnico. Tudo isso sob os olhares atentos, rigorosos e tensos de milhões de telespectadores. O herói de hoje se converte no mais reles vilão no dia (ou no jogo) seguinte como que por um lance de mágica.
Dunga, contra a Rede Globo e tudo, às vésperas do jogo com a Holanda ostentava índice de popularidade perto do alcançado pelo presidente Lula. Um fenômeno. Felipe Melo, o meia-armador que deu o passe para o gol de Robinho, num instante conquistou o grau de gênio: “Que visão de jogo! Na medida!”, elogiavam narradores entusiastas. No segundo tempo, porém, após a falha no primeiro gol holandês e sobretudo depois da expulsão de campo, virou um medíocre e desequilibrado meio-campista. Um perfeito vilão.
Agora se multiplicam as resenhas esportivas no rádio e na TV, artigos e balanços retrospectivos nos jornais e nos sites especializados, todos focados numa única e exclusiva obsessão: achar o culpado.
Claro que é Dunga! Ou alguém conhece algum fracasso em torneio tão importante em que o técnico não seja o caudatário natural da santa ira dos apaixonados torcedores?
Tudo bem que a maioria já punha em dúvida a capacidade de Dunga, desejava um futebol vistoso, que fizesse jus à fama de melhor do mundo. Mesmo que não ganhasse, pois o que vale é a beleza da vida e não necessariamente a vitória, asseverou o ex-craque Sócrates em entrevista à revista Caros Amigos. Só uma minoria compreendia a estratégia do gaucho hoje chamado pejorativamente de “anão”, de vencer a batalha no meio do campo e liquidar o adversário através da criatividade dos nossos atacantes. Mesmo se sabendo que de 1974 para cá, nenhuma seleção foi campeã jogando aberto e priorizando o chamado futebol arte.
Bom, a Pátria está salva: o culpado existe. Agora podemos dormir em paz e voltar nossas energias para a outra guerra que se aproxima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário