Cidadania, pássaro e rosas
Luciano Siqueira
Dona Laura passa dos oitenta. Mas os gestos largos, o tom de voz firme e modulado, a boa dicção e o olhar vivaz expressam cativante alegria de viver. Apesar de consumir seus dias sozinha, no limitado espaço de um apartamento de dois quartos, no segundo andar de edifício sem elevadores. A filha, com quem reside, professora da rede pública, trabalha os três expedientes, de segunda a sábado, para assegurar o sustento das duas. Resta-lhe a pequena varanda, que divide com um canário cantador e um vaso de concreto onde cultiva rosas em minúsculo jardim.
- “Da varanda olho o mundo, escuto o canário e converso com as rosas. É a minha vida.”
Milhões de habitantes de nossas cidades, como Dona Laura, estão condenados à solidão, nas suas diversas formas. A maioria talvez não tenha como se refugiar na contemplação da paisagem, no gorjear do pássaro de estimação e no diálogo poético com as rosas. Muitos caem no desespero ou simplesmente afundam numa infeliz rotina.
Trata-se de uma espécie de crise da cidadania. O indivíduo sente-se oprimido pela concorrência, pela ameaça de perder o emprego, ou cansado de procurá-lo, sem êxito. Temendo a violência nas ruas, se autoconfina entre quatro paredes, vulnerável à mensagem sufocante das redes de TV, por onde lhe chegam apelos consumistas, relativos a um modo de vida artificial e frustrante.
O fenômeno ressalta o papel do governo da cidade na melhoria do padrão de vida dos seus habitantes. Planos, programas e projetos devem se inspirar no intuito de criar condições para que as pessoas possam experimentar em suas vidas uma ponta de felicidade, ainda que parcial e transitoriamente. Um exemplo é o Plano Diretor, no Recife recentemente atualizado, para adequá-lo ao bom uso dos instrumentos contidos no Estatuto das Cidades - tendo como foco a distribuição espacial e setorial de problemas e potencialidades, e como objetivo a formulação de soluções técnicas pactuadas com a sociedade, em benefício da maioria.
O Plano Diretor é um importante instrumento auxiliar da gestão pública, na medida em que aborda a cidade não apenas como território da reprodução do capital, mas sobretudo como espaço de convivência entre os cidadãos; e favorece uma relação saudável do indivíduo com o seu lugar. Desde que efetivamente aplicado. Para ajudar gente como dona Laura a compartilhar com os vizinhos o canto dos pássaros e a beleza das rosas.
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