Coragem é preciso
Luciano Siqueira
Início dos anos setenta. Fazíamos nossa primeira viagem de ônibus no pinga-pinga da linha Maceió-Juazeiro do Ceará. Longo percurso, trechos enormes em estrada de barro. Calor, poeira, choro de criança, cacarejar de galinhas. O objetivo era encontrar casa para morar no sertão alagoano, necessário para que pudéssemos nos resguardar da perseguição policial e prosseguir a atividade militante numa área interiorana onde dificilmente seríamos reconhecidos, o casal de ex-estudantes do Recife agora transmudados em vendedores ambulantes de confecções. O autor dessas linhas, registrado como camponês num cartório em Messejana, Ceará; a companheira Luci, dizendo-se empregada doméstica, num cartório de Campina Grande, Paraíba. Casados no civil em Maceió e a partir daí portadores de um documento – a certidão de casamento – que lhes permitiu adquirir legalmente, embora com nomes falsos, carteira de identidade e outros papeis igualmente úteis.
Tudo surgia como novidade aos nossos olhos, um mundo que não conhecíamos: total alumbramento, como diria o poeta Manuel Bandeira. Foi quando, a certa altura, um vaqueiro começou a contar a um colega de viagem um episódio em que fora protagonista: a perseguição a um boi bravo e arisco, “como nunca se tinha visto nessas terras”. O tom de voz, inicialmente discreto, aos poucos se elevou de modo a que todos no ônibus pudessem ouvi-lo: um largo silêncio se fizera como produto da curiosidade despertada pelo causo e aos poucos adquirira um certo quê de admiração e respeito.
Contava o vaqueiro sua aventura talvez até acrescida de um ou outro traço fantasioso, pois agora mais do que o amigo era necessário impressionar os novos ouvintes. Pelo dito, a caatinga, palmilhada por lajedos e estreitas veredas, exigia destreza, coragem, determinação. O boi lutava desesperadamente contra o perseguidor inclemente. Parecia que o animal venceria o homem, porém através de manobras ousadas e arriscadas, este finalmente conseguira laçar o animal.
O clímax se deu envolto pelo mais reverente dos silêncios. Triunfante, o vaqueiro enfim tirou o chapéu de couro e encarou a platéia atenta com um sorriso de dentes faltos, a pele morena curtida pelo sol, guerreiro vitorioso na mais renhida das batalhas:
— Pois é, meus senhores, para ser vaqueiro num sertão danado como esse é preciso ser um homem de coragem!
Os aplausos irromperam no exato momento em que o motorista estacionou o ônibus defronte a um tosco restaurante de beira de estrada.
O jovem casal de comunistas, absolutamente tomado de fascínio pela cena, controla a emoção, comportando-se com a discrição necessária.
— Esse povo está preparado para a Revolução – comenta baixinho Luci.
— Verdade. Sobreviver enfrentando tanta dificuldade só com muito espírito de luta.
Você pode até achar que uma coisa nada tem a ver com a outra. Mas tem. E muito. É que o fato nos vem à lembrança como inspiração para enfrentarmos os desafios da luta presente. Muitos são os problemas, enormes os obstáculos – mas, tal como o vaqueiro alagoano, é preciso antes de tudo ter coragem. E confiança no povo.
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