Rosa e Goto
Matheus Landim
Quando Rosa atingiu o portão e o tradicional latido não se fez, ela não pôde conter-se; desfez-se. Goto estava fazendo a falta que ela sabia que faria. Não haveria mais latidos para acordá-la no meio da noite ante a possibilidade de um invasor; não haveria quem abanasse o rabo para ela quando chegasse em casa; não haveria aquele olhar brilhante de inocência e leviandade a fitá-la por segundos, minutos, horas afim, sem cansaço, sem julgamento, sem motivo, enquanto ela cozinhava, pintava, ou simplesmente fazia nada. Quem ia saltar sobre ela em desesperado júbilo depois de um fim de semana de viagem? Quem ia derrubar seus vasos com o rabo desengonçado? Só havia ela agora para derrubar os vasos, talvez batendo neles com o joelho enquanto caminha distraída ou enquanto os limpa. Quem mais dormiria encostado à porta do quarto toda noite e a recepcionaria com agradável euforia matutina? E o principal: quem estaria feliz, incondicionalmente feliz, de tê-la por perto? A desmontagem de Rosa se deu em vários momentos ao longo de uma semana; várias camadas dela foram sendo deixadas a cada momento sem importância (sem?) do cotidiano em que Goto estava presente, usualmente: logo depois que chegou em casa e o único barulho que se ouvia era o dos seus passos, foi almoçar. Os almoços eram momentos de especial ligação, agora ela sentia. Primeiro, botava a tigela dele ao lado da mesa, cheia, então ele corria sem aprumo (sempre estava sem aprumo) até ela. Sempre terminava primeiro. Depois ficava olhando de um modo doce e travesso ao mesmo tempo para Rosa, assistindo-a comer, meio que avisando com infantil deboche que terminara primeiro, como um irmão mais novo, meio que pedindo um pouco da comida dela, mesmo sabendo que receberia um não, como um filho pequeno e guloso, meio que verificando se ela comeria tudo, como uma mãe em tola preocupação, meio que admirando-a por puro divertimento, como alguém apaixonado. Porque era isso que ele era, no fim das contas; pura paixão. Uma paixão juvenil, quadrúpede, devotada. Quando ela instintivamente se abaixou para alcançar ao lado do fogão a tigelinha azul e não havia tigelinha azul a ser pega, sentiu que a primeira camada caiu. Almoçou sem companhia. De agora em diante, ele não estaria mais lá para avisar que havia terminado, pedir mais ou vê-la comer. Seriam só ela e a cozinha, e agora comer seria mais uma atividade solitária, e a cozinha se tornara um cômodo solitário. Outra camada caiu quando ela se dirigiu ao sofá para ler, sentou-se e como de costume logo retirou as almofadas para que o saltador cão não as empertigasse com pelos no momento que saltasse sobre o assento para encostar a cabeça no colo dela (ele sempre era mandado de volta ao chão, no entanto); ela aguardou ansiosa pelo vendaval que viria de algum lugar (de algum lugar ele viria), mas nenhum estabanado apareceu para ser mandado de volta ao chão e de agora em diante também não haveriam pelos castanhos sobre o sofá. Goto não ficaria descansado no chão, com a cabeça sobre seus chinelos, enquanto ela lia Katherine Mansfield e nem despertaria de vez em quando só para atrapalhá-la (ele não conseguia ficar muito tempo sem atenção, bobinho, quando ela estava lá – ela era todo o seu universo). Ah, e quanto do seu cheiro tinha o sofá! A casa toda, na verdade. Quantas vezes ela havia pensado no que as visitas achariam daquele cheiro de cachorro e agora ela estava inteiramente deitada no sofá só para sentir o cheiro da saudade. E nem recebia tantas visitas assim. Ansiosa demais para ler, foi deitar-se na cama dizendo para si mesma que tudo na vida vai embora, e que com o passar do tempo ela se acostumaria à ausência dele. Na ida ao aposento, vislumbrou o espaço vazio entre a última estante antes da parede e a parede, onde ele também gostava de ficar, e mais uma camada ficou lá, deitando-se arrependida como poucas vezes na vida. (...)
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