Portinari
O operário em construçãoVinicius de Moraes
Era ele que erguia casas
onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
da sua grande missão:
não sabia, por exemplo,
que a casa de um homem é um templo,
um templo sem religião,
como tampouco sabia
que a casa que ele fazia,
sendo a sua liberdade,
era a sua escravidão.
De fato, como podia
um operário em construção
compreender por que um tijolo
valia mais que um pão?
Tijolos, ele empilhava
com pá, cimento e esquadria;
quanto ao pão, ele o comia.
Mas fosse comer tijolo...
E assim o operário ia
com suor e com cimento
erguendo uma casa aqui,
adiante um apartamento,
além uma igreja, à frente
um quartel e uma prisão;
prisão de que sofreria,
não fosse eventualmente
um operário em construção.
Mas ele desconhecia
esse fato extraordinário:
que o operário fazia a coisa
e a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia,
à mesa, ao cortar o pão,
o operário foi tomado
de uma súbita emoção
ao constatar assombrado
que tudo naquela mesa
- garrafa, prato, facão -
era ele quem os fazia,
ele, um humilde operário,
um operário em construção.
Olhou em torno: gamela,
banco, enxerga, caldeirão,
vidro, parede, janela,
casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
era ele quem o fazia,
ele, um humilde operário,
um operário que sabia
exercer a profissão.
Ah! homens de pensamento,
não sabereis nunca o quanto
aquele humilde operário
soube naquele momento!
Naquela casa vazia
que ele mesmo levantara
um mundo novo nascia
de quer suspeitava.
O operário emocionado
olhou sua própria mão, sua rude mão de operário,
de operário em construção,
e olhando bem para ela
teve um segundo a impressão
de que não havia no mundo
coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
desse instante solitário
que, tal sua construção,
cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo,
em largo e no coração,
e como tudo que cresce
ele não cresceu em vão.
Pois além do sabia,
exercer a profissão,
o operário adquiriu
uma nova dimensão:
a dimensão da poesia.
E uma fato se viu
que a todos admirava:
o que o operário dizia,
outro operário escutava.
E foi assim que o operário
no edifício em construção,
que sempre dizia sim,
passou a dizer não.
E aprendeu anotar coisas
a que não dava atenção:
notou que sua marmita
era o prato do patrão,
que sua cerveja preta
era o uísque do patrão,
que seu macacão zuarte
era o terno do patrão,
que seus dois pés andarilhos
eram as rodas do patrão,
que sua imensa fadiga
era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
na sua resolução.
Como era de se esperar,
as bocas da delação
começaram a dizer coisas
aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
nenhuma preocupação:
“- Convençam-no do contrário!”
disse ele sobre o operário,
e ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
ao sair da construção
viu-se súbito cercado
dos homens da delação
e sofreu, por destinado,
sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido,
teve seu braço quebrado,
mas quando dói perguntado
o operário disse: não!
Em vão sofrera o operário
sua primeira agressão;
muitas outras se seguiram,
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
ao edifício em construção,
seu trabalho prosseguia
e todo o seu sofrimento
misturava-se ao cimento
da construção que crescia.
Sentindo que a violência
não dobraria o operário,
um dia tentou o patrão
dobrá-lo de modo vário;
de sorte que foi levado
ao alto da construção
e num momento de tempo
mostrou-lhe toda a região, e apontando-a ao operário
fez-lhe esta declaração:
“- Dar-te-ei todo este poder
e a sua satisfação,
porque a mim foi entregue
e dou-o a quem bem quiser,
dou-te tempo de lazer,
dou-te tempo de mulher...
Portanto, tudo o que vês
será teu se abandonares
o que te faz dizer não.
Disse e fitou o operário
que olhava e que refletia;
mas o que via o operário,
o patrão nunca veria.
O operário via casas
e dentro das estruturas
via coisas, objetos,
produtos, manufaturas;
via tudo o que fazia
o lucro do patrão
e, em cada coisa que via,
misteriosamente havia
a marca de sua mão.
O operário disse: “- Não!”
“- Loucura!” – gritou o patrão –
“Não vês o que te dou eu?”
“- Mentira”, disse o operário –
“Não podes dar-me o que é meu.”
E um grande silencio fez-se
dentro do seu coração:
um silencio de martírios,
um silencio de prisão,
um silêncio povoado
de pedidos de perdão,
um silencio apavorado
com medo e solidão,
um silencio de torturas
e gritos de maldição,
um silencio de fraturas
a se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
de todos os seus irmãos,
os seus irmãos que morreram
por outros que virão.
Uma esperança sincera
cresceu em seu coração
e dentro da tarde mansa
agigantou-se a razão
de um homem pobre esquecido,
razão porém que fizera
um operário construído
um operário em construção.
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