O Homem só
Luciano Siqueira
Desde os primeiros dias de sala de aula no curso médico da Universidade Federal de Pernambuco, alguns colegas vaticinavam que eu seria psiquiatra – mesmo que eu lhes dissesse não sentir nenhuma atração pelo metier. “Mas você atrai confidentes, cara, e isso é coisa de psiquiatra”, insistiam.
Não me tornei psiquiatra, a residência médica fiz de generalista, depois a pós-graduação em saúde pública e finalmente dediquei-me a tratar de crianças – uma das minhas paixões na vida. Mas, é verdade, continuei estrada afora compartilhando confidências, mesmo com desconhecidos nas mais diversas situações: em encontros casuais em mesa de restaurante, em salão de embarque de aeroporto, na sala de espera de consultório médico, no taxi.
Devo dizer - por uma questão de justiça –, disso me beneficio pra caramba, cá com meus botões extraindo lições de cada caso.
O senhor “X” (não lhe perguntei o nome, falha minha) encontrei na sala de espera do oculista. Companheiro de geração, um tanto alquebrado mas de olhar vivo e gestos seguros. Eu lia as “70 Historinhas” de Drummond. Fechei o livro e olhei a esmo, enfadado pela espera. Foi a deixa: “Dr. Luciano, o senhor não me conhece... Eu acompanho sua luta há muito tempo...”, e por aí seguiu numa referência generosa à minha conduta pública como introito.
Um homem sensato, sensível, receptivo ao drama alheio. Uma espécie de “loja de conveniência” nas relações interpessoais, tal a variedade de situações que mencionou em não mais do que meia hora de conversa. Desfiou gestos de plena solidariedade, sem que seu relato traísse qualquer traço de presunção. (“Amigo é pra essas coisas”, ouvi em silêncio a voz de Paulinho da Viola). Falava naturalmente. Eu apenas escutava, uma pergunta aqui outra acolá para lhe facilitar o relato. Até que, voz embargada, confessou-se um homem só. Paradoxalmente só – ele que a todos socorria, o ombro amigo e ponderado, via-se entretanto ilhado num instante adverso. - “Tenho tomado decisões muito sérias a esta altura de minha vida sem ter a quem recorrer. Acerto sozinho, erro sozinho”.
Ouvidos atentos à recepcionista, que me chamaria à sala do Dr. Durval a qualquer momento, sem perder contudo uma só palavra do que me dizia. Via-me como que diante do espelho, em algumas passagens do seu desabafo – quem de nós em algum momento nas arenas da vida não se sentiu carente de um uma palavra amiga, um abraço compreensivo e solidário, um instante de cumplicidade? Mesmo esse amigo de vocês, a vida toda cercada de carinho e compreensão, já viveu isso: uma situação em que bastava “um gesto, ainda que de longe, de leve” (como no poema de Cecília Meireles) e colheu apenas a mais ruidosa indiferença.
Comovido eu estava com a solidão do senhor “X”. Emocionado, solidário, cúmplice. Até que nossa conversa foi interrompida pela atendente, que o chamou para a consulta, quase ao mesmo tempo em que eu também era chamado. Separamo-nos assim bruscamente, ambos sem o cuidado de nos darmos os telefones e nos dispormos a novos encontros. Na saída, as pupilas dilatadas, de olho no relógio e na agenda, sequer me lembrei de procurar o fugaz amigo para o último cumprimento. Quem sabe possamos nos ver novamente no oculista. Há muito que aprender com a sua solidão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário