No Vermelho:
Bajado, o maior cronista de Olinda
Marco Albertim
Rua do Amparo, 186, Olinda. A casa tem uma alvenaria simples, com uma fachada barroca, a exemplo das vizinhas e da igreja do Amparo, ícone maior da arquitetura local. Arbitre-se, a bem da memória, um recuo no tempo; um recuo de vinte anos e recupera-se vivo, inda que fugidio, o perfil balofo de Bajado. Não o temos rapaz, com prumo nos punhos, pintando cartazes de filmes faroestes no cinema de Catende. Ali começara o aprendizado, já com o apelido contraído em Maraial, num jogo de dados.
Está sentado numa cadeira de vime, com recosto mole; pode cair, mas ele a mantém no costumeiro equilíbrio. Do lado direito de seu braço, encostado à parede, há um móvel antigo com quatro pés longos abaixo da mesa que dá apoio a um rádio transmissor. Pode ser um ABC; ele pouco se incomoda. Interessa-se mesmo em dar conta do contorno dos objetos mencionados pelo locutor. Está quase cego, Bajado; o juízo trabalha no lugar dos olhos.
Da cozinha, vem o cheiro de um feijão tão caseiro quanto os chinelos do pintor ou de dona Biu. Dona Biu, assim se refere à mulher que lhe dera filhas tão pacientes quanto ela. A paciência também está no rosto de Bajado. Houve um carnaval, no entanto, que perdera a paciência. A memória não ajuda na menção do ano; mas a precisão do calendário não se sobrepõe ao episódio. Decidira, ele, seguir O Homem da Meia-Noite. Não havia como resistir, porque numa de suas telas dera leveza aos vinte quilos do boneco nos ombros de um folião com o rosto oculto na fantasia do personagem.
Dona Biu insistiu em ir. Não a queria do lado, ele, não no frenesi d’O Homem da Meia-Noite. Inda que não confessasse, tinha nos cálculos os dias do ano em que dividira a rotina com dona Biu. Como projecionista do Cine Olinda, letreirista de lojas, pintor de mamíferos em fachadas de açougues.
Pôs nos pés um par de botas curtas, com solado de borracha de pneu de caminhão. Os dois desceram o único degrau da porta da frente para a calçada. Ela segurando em seu braço; para reiterar a jura do casamento, para suster o corpo na rijeza do marido. No Largo do Amparo a multidão espremia-se entre a igreja matriz e a da Misericórdia. Quando o boneco do Homem da Meia-Noite, no oitão da Misericórdia rumo ao Largo do Guadalupe, Bajado e dona Biu estavam na esquina da igreja, ao lado. Dir-se-ia que o trombonista e o pistonista da orquestra, cúmplices do pintor, também urdiram o recolhimento de dona Biu. A nota mais estridente de Vassourinhas estourou nos ouvidos do casal. Bajado grita. Dona Biu tem as ancas soltas, inda que não cruze as pernas no ritmo do frevo. Seu marido levanta uma das pernas, a esquerda, ao lado da mulher. Ele mirara com precisão. A bota, justo o calcanhar do solado, pisa sem dó o dedo menor de um dos pés de dona Biu. Ela grita, não consegue esconder a agonia da dor. Bajado desculpa-se, acode-a com os braços, quase beija-a na quentura do frevo. Ela não quer beijo, quer alívio no dedo roxeado.
Para casa, há unguentos para o curativo.
Bajado brincou os quatro dias de carnaval sem o incômodo de dona Biu segurando o seu braço.
A casa da rua do Amparo abriga o espectro de Bajado. A janela mourisca, quando se abre, descortina o rosto miúdo de Euclides Francisco Amâncio. Quase cego, os pulmões escurecidos no bafejo das tintas. A boca, desdentada, dando conta de um arremedo de dente na saliência dos beiços. Ele ri quando o cumprimentam, tímido, mirando-se na energia dos mais moços.
Há meia dúzia de quadros nas paredes; são aquarelas do carnaval de Olinda. Nas paredes da sala de visitas da Prefeitura, havia dezenas de quadros de Bajado. Agora estão numa sala fechada no pavimento de cima. O acesso é permitido mediante agendamento do dia, da hora. As crônicas mais alegres de Olinda estão ocultas numa sala de reuniões.
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