23 fevereiro 2013

Baluarte da resistência democrática

Tributo a Fernando Lyra
José Nivaldo Junior *


Conheci  Fernando Lyra em meados de 1978, através da nossa amiga comum Magnólia Cavalcanti. Na época, ele já era um ícone da resistência democrática contra a ditadura militar e também travava uma difícil batalha pela sobrevivência. Seu coração danificado por um enfarto demolidor,  sobrevivia graças a várias pontes de safena, implantadas nos Estados Unidos.

Fernando estava procurando um publicitário para cuidar da sua campanha à reeleição para Deputado Federal.  Eu, querendo uma oportunidade para ingressar profissionalmente na área do marketing político. Foi sopa no mel.

Campanha política gera, entre publicitário e cliente, intimidade imediata. A admiração que já cultivava à distância somente cresceu com a convivência. Contrariando o axioma de que nenhuma idolatria resiste à proximidade. 

Ficamos amigos. Estreitamos uma parceria profissional que me permitiu acompanhar muito de perto  momentos decisivos da História. Só por isso,  deveria a Fernando Lyra alguns dos momentos mais importantes da minha vida.

Posso dizer com autoridade: ele foi um dos políticos mais corajosos, éticos, ousados e importantes do seu tempo.

Quando se instalou a ditadura militar o seu pai, João Lyra Filho, era empresário rico e político bem sucedido. Decidiu filiar-se ao MDB, o partido que nasceu escalado para fazer  oposição  a fim de dar ao regime ares de democracia. Os filhos acompanharam a opção. Fernando e João Lyra Neto, nosso atual vice-governador, também viraram emedebistas. Só que pensando em fazer oposição de verdade.

Em 1966, Fernando elegeu-se deputado estadual e “seu” João,  Federal. Nas eleições de 1970, inverteram-se as posições. Louve-se a visão do pai: “Meu filho, você vai para Brasília porque lá você pode contribuir com a democracia muito mais do que eu”.

Palavras proféticas. Com poucos meses de mandato federal, conquistado inclusive com os votos do PCB, na época liderado por Paulo Cavalcanti, Fernando começou a interferir decisivamente nos rumos da história.

Sem ser  marxista, ele compreendia a importância do “processo político”. E entendia claramente que as pessoas constroem sua própria história nas condições que lhe são proporcionadas.

Foi um dos fundadores e líderes do Grupo Autêntico do MDB, através do qual o partido  se transformou em instrumento efetivo de contestação da ditadura. Pai de filhas pequenas, enfrentou  no dia-a-dia da sua desafiadora atuação os riscos de cassação de mandato, prisão, torturas, exílio , assassinato, seqüestro.  Nunca lhe faltou um pingo de coragem.

Nas eleições de 1974, articulou uma estratégia que abalou a ditadura: o MDB lançou candidatos de cara nova para o Senado e venceu em nada menos que 16 Estados. Em Pernambuco ganhou Marcos Freire, de quem Fernando foi o mais entusiástico defensor. Começou ali a abertura “lenta, gradual e segura”, para usar as palavras do ditador Ernesto Geisel.  

Sua mais impressionante intuição se deu em 1983. Com a ditadura nos estertores, a oposição superou o casuísmo do voto vinculado e venceu, no ano anterior,  as primeiras eleições diretas para governador nos  Estados de eleitorado predominantemente urbano.

As principais figuras da oposição se dividiram entre as posses de Brizola, no Rio, e Franco Montoro em São Paulo. Fernando Lyra foi para Belo Horizonte, assistir a posse de Tancredo Neves, um político do Grupo Moderado do partido, portanto seu rival  nas disputas internas.

E justificou ao seu perplexo anfitrião: “O senhor é o nome ideal para as oposições concorrerem à Presidência.” Quando a emenda que propunha eleições diretas foi derrotada no Congresso, Fernando passou a articular abertamente o nome de Tancredo para disputar  no Colégio Eleitoral, desafiando o candidato dos militares. Muitos vieram depois. Ele foi o primeiro.

Visando não apenas a vitória como também a legitimidade do apoio popular, a estratégia da comunicação  de Tancredo Neves era como se ele fosse disputar o voto direto. Coordenei a propaganda de convocação do grande comício, em Caruaru, no qual Fernando fez o lançamento em praça pública, com repercussão nacional.

Os discursos de Fernando Lyra eram marcantes, inesquecíveis. Com sua voz de trovão, ele bradou seu refrão preferido: “E quando os votos do Colégio Eleitoral forem dados, eu quero ouvir: Tancredo. Tancredo. Tancredo. Tancredo Neves, presidente do Brasil.” A multidão, arrepiada, delirava. Uma girândola completava a emoção.

Quando desceu do palanque, Tancredo abraçou Fernando. Eu estava perto o suficiente para ouvir sua fala: “Deputado Fernando Lyra, eternamente grato”.

Vitorioso, Tancredo escolheu Fernando para a pasta da Justiça, que na época tinha a dimensão de ser  o Ministério político do governo. Com a missão de devolver ao país a Democracia plena.

Tarefa que ele cumpriu nos 11 meses em que foi ministro de Sarney, o vice  que assumiu a  Presidência com a doença e morte de Tancredo. Justiça se faça: o maranhense, egresso da direita que apoiara a ditadura, autorizou e deu suporte à remoção do entulho  da legislação autoritária. O fim da Censura, pelas mãos de Lyra, foi o momento mais simbólico desse processo.

Fernando Lyra representa uma das principais personagens da redemocratização do Brasil. Somente com isso, teria garantido seu lugar na história.

Estadista que pensava no País acima de tudo, nunca praticou uma atitude política para tirar vantagem pessoal. Honesto a toda prova, não aumentou patrimônio na vida pública. É portanto uma referência ética neste País de escândalos e malfeitos.

Pessoa humana extraordinária, iluminava com sua conversa sempre exuberante qualquer ambiente. Estava à vontade entre sábios ou comuns. De todos, sentia-se igual.

Bacharel de Caruaru, como diziam alguns medíocres detratores, empolgou em conferência o seleto público da Sorbonne. Dialogou com os maiores líderes mundiais. Ficou amigo de vários deles.

Com a mesma naturalidade com que visitava os presos políticos nos cárceres,  freqüentava os mais requintados salões. Denunciava crimes políticos da ditadura com a mesma firmeza com que clamava contra as injustiças sociais.

Não fazia distinções no bem querer. Seus amigos não eram  velhos ou novos, freqüentes ou episódicos. Tinha amigos, e ponto final. A todos dedicava, sem distinção, um afeto imenso e não excludente.

Nessa difícil hora do adeus definitivo, vale ressaltar o exemplo de um homem plural, de múltiplas facetas sempre propositivas. Sobretudo um ser humano que amava a vida  com todas as forças.

Em meio à imensa tristeza da perda, me considero feliz. Como todos os que conviveram com ele, carregarei para toda a vida a energia positiva que emanava do seu ser. O seu exemplo nos convida a viver com mais ardor, com mais paixão.

Esse é o grande tributo que podemos prestar à sua memória.
*Publicitário e escritor.  ze@makplan.com.br

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