Marco Albertim
Robson
tem 14 anos; a voz débil combina com a compleição miúda. As pernas estão à
mostra sob a bermuda de cor cinza; na camisa verde desbotado reflete-se, por
tabela, a luz que o sol faz incidir no canal do Arruda. É difícil distinguir a
cor de sua camisa, bem como a da água gelatinosa do canal. A sujeira ali
depositada, no aperto de copos plásticos, papéis, talos de madeira e molambos,
não é um traço telúrico; é uma superfície doentia, feito as chagas de um corpo
bexiguento. Robson, com o corpo fino, lembra a estreiteza do canal.
Ele
esboça um sorriso nos olhos, na boca, quando se dá conta de que o prefeito
Geraldo Julio tem na mão um microfone. A voz do prefeito ressoa sem alarde; o
dispasão, fraco, acode-se no anúncio da construção do Galpão de Triagem de
Resíduos Recicláveis. Robson é pouco atento às nuanças do calendário, inda que
se lembre da conversa de sua mãe, no almoço de fartura regrada ou no jantar do
cuscuz fumacento, cheiroso.
-
Minha mãe vai votar nele... – adianta com inconfidência.
As
eleições de outubro último são um traço a menos no calendário. Robson, no
infinitivo do verbo, anuncia o propósito da mãe num ato ainda por acontecer.
Mirando-se na mulher que o pariu, ele engatinha sua cidadania.
Faz
calor em todo o Recife. Nas margens nuas do canal, a fervura do tempo é vista
na apuração dos olhos. Sob a tenda improvisada, a comitiva do prefeito assente,
não exibe o luxo próprio dos salões. Newton Mota, o secretário de
Infraestrutura, fora o primeiro a usar o microfone. “Feito o plano de ataque,
vem agora a ordem de serviço. Em oito meses, talvez seis meses, o
galpão estará pronto”, diz ele, com os pés no palco de madeira
empoeirada, por certo com a noção de que a sonoridade de sua voz repercutirá
nos ouvidos das 70 mil pessoas que moram no entorno do canal do
Arruda. O secretário de Governo, Sileno Guedes , seguira-o na falação.
Assenta-se na memória que tem do vozerio popular. “O galpão será construído
graças à luta do povo!”
Geraldo
Julio, o derradeiro a falar, franze a testa para se mostrar convencido de que é
impossível “viver com a lama no lixão, na lama.” Conforme ele, já foram
retiradas mais de setecentas toneladas de lixo, do leito do canal; mais de
seiscentas e cinquenta nas margens do canal. O programa de governo estima em
doze o total de galpões que serão construídos. A mão que não empunha o
microfone, sacode-se conforme a gravidade de cada sentença. Ele acusa os
responsáveis pelos focos de tétano, de hepatite B, “as empresas que depositam o
lixo e estão longe do canal.” Menciona a mudança do cenário com a urbanização
do canal. Robson, o único garoto da comunidade Palha de Arroz no meio de
barnabés sem a severidade de outrora, mostra os dente s quando o prefeito
antecipa a construção de ciclovias. Mais casas serão erguidas na busca do fim
do déficit habitacional, ainda peco em mais de 120 mil casas.
Não
distante dali, vê-se a bueira restaurada do Nascedouro de Peixinhos. A tenra
caliça de seu verde transparente não solta cheiros de estrume queimado, como
nos tempos do matadouro. A cor suave acolhe os sons de trombones, bombardinos e
percussões no palco. São moços de Peixinhos no ensaio musical. O ruído não
interrompe a viagem que, na biblioteca vizinha, outros moços fazem na fruição
de narrativas de Machado de Assis, de José Lins do Rego. Na comunidade Palha de
Arroz não há biblioteca, não há moços soprando trompetes. Há o ouvido atento de
Robson, o peito tênue, sôfrego de músculos. O juízo tão curioso que se fartaria
de cores no meio de uma festa mambembe. As pernas finas têm familiaridade com
os becos da Palha de Arroz. Antes de chegar em casa, feito um artista mambembe
com um sorriso próprio, não ensaiado, deixar-se-á cobrir pela escassa sombra ao
lado de um pardieiro abandonado; onde, na administração passada, a Construtora
Delta instalara escritório e depósito. Não há mais portas nem janelas, os vãos
estão abertos nos pavimentos de baixo e de cima. Houvesse ali uma biblioteca,
ou a combinação fortuita da rebeca com o tambor, Robson teria mais escolhas
para suas tardes ociosas.
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