03 março 2013

A vida do jeito que é

Em memória de Trajano Godoy
Marco Albertim no portal Vermelho www.vermelho.org.br

 

Deu-se que Trajano levantou-se de vez; levantou-se sem dar prumo às pernas tão conhecidas por sustentar os quase dois metros de altura, o tórax e o rosto tão quadrado quanto uma moldura sem curvas.

O rosto mostrou-se convulso, os olhos fitos no chão e o suor encharcando a testa. Não que fosse dado a preocupações com o juízo que fizessem de si. De uns dez anos para cá, dera e vinha dando mostras de enfado no tórax. Por seu porte e modo elegante, fora brioso no cumprimento de tarefas. O ir e vir dos outros, enchera-o de conhecimento sobre o modo como cada um se desincumbia de sua atribuição.

Trajano não confessou o cansaço, inda que se sentando com as pernas cruzadas e os quadris colados ao encosto da cadeira dura, amaciado por outras costas que ali tinham apoio. Ele juntou na memória os traços de todos que cruzaram com ele a distinção de espreitar o fim da ditadura. Agora vivendo sem rebuços, deixou que o bolor dos olhos e a exaustão do juízo toldassem a apreciação dos novatos na inteireza de suas forças, do que podiam dar à peleja.

Levantou-se sem se despedir dos outros em volta da mesa, sem pagar a parte que lhe cabia na despesa. Os anos de militância deram-lhe rijeza no julgamento que tinha dos fatos, de cada um dos demais. A testa escura, sulcada, os olhos cobertos por sobrancelhas grisalhas, um ou outro fio de negrume sedoso, tornavam-no suscetível ao indulto; mais ainda em se tratando de um pecadilho sobrevivente do tempo em que, com robustez, enfrentara a persuasão religiosa do coronel Ibiapina no manuseio da manivela elétrica.

Trajano levantou-se depois de entornar três doses de gimpari. A proeza semântica, assim o cria, servia de despiste para que não o flagrassem no uso sem cálculos da bebida. Juntar no mesmo copo a genebra com o Campari fora fácil de intuir na prostração das ideias; não o bastante; fora preciso dar-lhe um nome para que o sabor se tornasse sonoro e distraísse quem o espreitasse perto do juízo final.

Luiz Quadros, na mesa, foi o primeiro a esboçar indulto pelo sumiço de Trajano. Não tanto pela moldura dos anos nos costados dele, inda que o traço fosse visível e refulgisse no tronco cheio, em forma de baú, de Luiz Quadros; mas pela circunstância de que a irmã de Trajano, noutra época, fora casada com ele, Luiz Quadros. Ela, acrescente-se, fez pouco caso da certidão de casamento, assim que notou os sinais de desaprumação nas pernas do marido.

Trajano virou a esquina ajudado pelo susto de se crer tão mortal quanto um crente; ele incréu, acima de crenças vãs. O vento abanou-o nas pernas sob a bermuda, e convenceu-o de que o traje apenas o ajudara a tramar o consórcio entre a genebra e o coquetel já pronto na garrafa.

Três dias depois, o mesmo vento que soprara dali os passos de Trajano, trouxe a notícia de que ele, em casa, não conseguira segurar a xícara de café para levar à boca. O tremor das mãos, numa das vezes, salpicara o pijama listrado com manchas marrons do café.

Luiz Quadros, com os olhos pontudos na vermelhidão do uísque, disse com a familiaridade própria de quem fora membro da família de Trajano Godoy; disse como se os pulmões de Trajano, infensos a achaques, não respirassem no mesmo ritmo do enfado no tórax.

- Trajano tem a couraça de um bolchevique! – sentenciou sem evitar os salpicos de saliva sobre a mesa.

- Já aconteceu outras vezes – emendou o garçom. – Trajano Godoy não vai abotoar o paletó sem deixar escorrer o último pingo daquelas duas garrafas.

Apontou para a prateleira de verniz escuro do Scotch Bar, onde as duas garrafas – Gim e Campari – luziam a metade do conteúdo à espera do usuário.

Luiz Quadros, ao casar-se com a irmã de Trajano, não fizera caso com a recusa da nubente em trocar o nome na certidão de casamento. Creu-se capaz de recuperar o passado.

- Se Trajano abotoar o paletó, ninguém, nenhum de nós terá o direito de usurpar o direito que ele ganhou de provar o conteúdo daquelas duas garrafas. Elas serão mantidas no mesmo lugar, feito dois ícones em sua memória!

Trajano morreu no hospital. Os amigos não o visitaram nos três dias em que esteve internado. Não tiveram paciência de sentar na sala de espera, à hora autorizada para visitas.

- Não me rendo à doença de Trajano Godoy! – arguíra Luiz Quadros.

O garçom do Scotch Bar foi ao velório. Ao entrar na sala onde o ataúde fora posto, cruzou com Luiz Quadros sob o umbral. A modo de cumprimento, Luiz Quadros fez um esgar com os lábios abertos, mostrando os dentes trincados; depois ajuntou:

- É assim que ele está esperando por você.

À noite, no bar, o garçom, único a não beber, tirou da prateleira a bebida da estima de Trajano Godoy. Despejou-a até ocupar metade do copo, o mesmo copo de uso de Trajano.

- Bebo à memória de Trajano Godoy. Ele queria me recrutar para o Partido. Eu recusei. Hoje ninguém paga a conta. Deixem que descontem no meu salário

Bebeu tudo de uma vez e chorou convulso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário