Luís Fernando Verissimo
Publicado em O Estado de São Paulo
A dúvida sobre tratar o
acusado pelas bombas em Boston como cidadão americano, com todos os seus
direitos respeitados, ou como "combatente inimigo" julgado por um
tribunal militar, com direitos restritos e, se condenado, execução garantida, e
a proposta de se baixar a idade para a responsabilização penal no Brasil são
questões parecidas. Nos dois casos, o que se propõe é um retrocesso, a
suspensão de conquistas da civilização para enfrentar exigências extremas: no
caso americano o combate exemplar ao terrorismo, que não comportaria filigranas
jurídicas, no nosso caso a evidência de que cada vez mais crimes são cometidos
por menores, inimputáveis segundo a legislação. A conclusão nos dois casos é
que o processo civilizatório que priorizou a proteção dos direitos de todos,
inclusive de criminosos, foi uma conquista da retórica dos bons sentimentos,
impraticável diante da crua realidade. Os casos extremos testam a possibilidade
de a razão e de a ponderação conviverem com o embrutecimento geral da espécie,
e para enfrentá-los retrocedemos ao tempo em que não havia proteção alguma
contra a prepotência do Estado ou o erro da justiça. Quando não retrocedemos ao
tempo da reciprocidade bíblica, do olho por olho, de uma atrocidade vingando
outra. E o verniz da civilização se despedaça.
Nos Estados Unidos, pelo
menos em teoria (ou no cinema), todo preso tem direito de saber seus direitos
na hora da prisão: de manter-se em silêncio, de não se incriminar e de ter um
advogado. Principalmente depois dos atentados de 11/9, quando o Bush declarou
guerra ao terrorismo mundial, os Estados Unidos têm enfrentado o dilema de
serem - na sua própria avaliação - a única nação moral do mundo, obrigada a
recorrer a todos os meios para se defender do terror, inclusive a oficialização
mal disfarçada da tortura. Os presos sem direitos em Guantánamo são um embaraço
permanente para os americanos e tornam hipócrita a condenação dos presos políticos
em Cuba. O que fazer para satisfazer a revolta nacional com o ataque covarde em
Boston é outro desafio moral para a justiça americana. Parece que escolheram
processar o prisioneiro como cidadão do país. Ponto para a civilização, ou o
que resta dela.
No Brasil a questão da
maioridade penal ainda está para ser decidida. Talvez o verniz ainda resista
mais um pouco.
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