Ronaldo Correia de Brito
Só tive a medida do sofrimento de Claudiney Silva, paciente de um
hospital público onde trabalho, no dia em que vi seu retrato abraçado à filha
de dois anos. Olhando sorridente para a câmara, ele nem parecia o enfermo que
me habituei a ver, queixoso e transtornado. Outras imagens dispostas em
seqüência num álbum, iguais a uma revista em quadrinhos, me ajudaram a recompor
pedaços da vida de Claudiney, um doente que dava a impressão de não ter
história. Acusam os médicos de possuírem o olhar insensível, horizontal como o
dos atores que contemplam o nada. Às vezes, evitamos enxergar o sofrimento que
nos cerca por sobrevivência.
Claudiney Silva tem vinte e três anos. Quando levou o tiro que o deixou
sem sensibilidade da cintura para baixo e sem poder andar, acabara de completar
vinte e um. Vendia ovos na periferia da cidade. Dois rapazes o abordaram quando
descia de um ônibus. Ele tentou esconder o ganho de cento e noventa reais e um
dos assaltantes alvejou sua coluna vertebral. Bandidos nunca erram o alvo.
Claudiney, que não tinha planos pro futuro além da sobrevivência,
começou sua via crucis no instante em que foi baleado. Tentou levantar-se, mas
as pernas não obedeceram. Socorrido na emergência de um hospital público, ficou
internado por muito tempo. Teve alta com as primeiras escaras na região sacral,
que iriam se infectar e acometer outras áreas do corpo.
Na foto em que aparece bebendo cerveja ao lado de quatro amigos,
Claudiney veste bermuda, camiseta, e exibe um corpo naturalmente musculoso. É
possível que Marlene, a mulher catorze anos mais velha que o recebera em casa
como companheiro, o achasse bonito. Se beleza é uma aura de vitalidade, no
retrato é fácil encontrá-la. No rosto atual de Claudiney não vemos nenhum sinal
do que chamamos belo. A menos que idealizemos a palidez, a magreza extrema e os
cabelos
finos e quebradiços, como faziam os poetas românticos.
Ao sair do hospital na sua primeira alta, Claudiney voltou para a avó
que o adotara desde o nascimento. Marlene, a mulher com quem tivera uma filha,
já o havia expulsado de casa quando ficou sabendo que o companheiro contraíra
uma doença venérea. Não perdoou a traição com uma prima de dezessete anos, na
vida de prostituta desde os treze. Marlene não é bonita e aparece de shorts e
blusa com a barriga de fora, num retrato em frente a uma Kombi de lotação.
Marlene levava as refeições do ex-companheiro na casa da avó, embora não
tivesse mais nada com ele. Claudiney não recusava, pois na situação difícil não
dava para bancar o orgulhoso. Sem remorso, compreendeu que a ex-mulher não
merecia o que fizera com ela. Para redimir-se, contou a Marlene que batera na
prima quando soube que ela o contaminara com a gonorréia. Soube mais tarde que
a garota andava de caso com um motorista.
Como não tinha emprego
fixo, nem recolhia INSS, Claudiney ficou a ver navios num porto inseguro. Só
tinha a avó para socorrê-lo, igualzinho a quando nasceu. Marlene rareou as
visitas, apagou as lembranças do que faziam juntos em noites quentes e
desapareceu. Os amigos da cerveja tomaram chá de sumiço. Só as escaras
aumentaram, a infecção ganhou corpo e precisou de novo internamento. Vive há
três meses sob os cuidados do Estado, o mesmo que não lhe garantiu segurança.
Claudiney, como todos os que nascem, irá morrer. Mas sofrerá horrores
até chegar sua hora. A infecção destrói os tecidos, o sangue, a carne, apesar
dos cuidados da equipe médica. Os investimentos para debelar a infecção e
melhorar a nutrição de Claudiney são altíssimos. Antibióticos, albumina e
curativos especiais custam caro, dinheiro que poderia ser usado na prevenção de
doenças endêmicas, saneamento básico e educação.
Internado há três meses, Claudiney espera alcançar condições clínicas
para submeter-se à desarticulação dos membros inferiores, uma forma radical de
amputação. Antes, precisará fazer outras cirurgias. Os procedimentos lhe darão
chances de viver um pouco mais e melhor. Agarra-se à vida com unhas e dentes.
Igualzinho a ele existem muitos espalhados pelo Brasil. São as vítimas da
violência.
O Estado que gasta fortunas para cuidar desses quase mortos, falha em
cuidar dos vivos. Não seria mais barato prevenir a violência? O Estado talvez
possua o olhar horizontal, não enxerga misérias e dramas como os de Claudiney.
Deixa por nossa conta o sofrimento de tratar as feridas que ele não previne.
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Meu querido ... num País que pulou tantos degraus para o desenvolvimento, tá muito longe desta melhoria física e social. Não se constroem mais hospitais se os que existem, estão ruim das pernas. Não se constroem mais escolas se as públicas, estão desoladas. Não acaba com a violência se ainda permite a fabricação de armas para civis utilizarem. O que falta realmente ao ser humano é o olhar verdadeiro ... olho no olho....verdade com a verdade.... aperto de mão forte e sincero... Sonho de construir. Vontade de fazer. Certeza de realizar. Beijos
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