29 agosto 2013

A vida do jeito que é

Troca de senhas
Marco Albertim, no Vermelho

 
Nunca fora de rezas, nem mesmo os trejeitos de crente vincavam-lhe a testa; os olhos não se fixavam em nada da igreja, só a quietude funda das pupilas resgatando as chances de um bem-estar impossível, por isso mesmo frequente nos cálculos da memória. Na abóbada, a pintura de anjos com asas da mesma cor das nuvens, o rosto redondo e rosado de cada um em volta de um Cristo imberbe, serviu para acentuar a recusa a cortes de bajulação.

Mas percebeu que entre o desenho barroco e os bancos com as quinas chanfradas de madeira, havia um diálogo mudo; até o rosto cor de cera da mulher varrendo a passarela entre as duas fileiras de bancos, o vestido branco, comprido , com listras pretas finas, deram vida ao cenário morto da capela vazia. A mulher, familiar aos diferentes perfis de adoração religiosa, percebeu nos olhos do moço o encanto pelas emanações do círio com o pavio aceso, ao lado do único altar com a cintilação rubra do Sagrado Coração. Aproximou-se dele e...

- O moço tem alguma preocupação. Tem os olhos no Cristo e o pensamento em suas palavras...

Não lhe fez perguntas, mas as reticências no final da frase soaram mais fundo do que um interrogatório sonoro. Se nunca fora de rezas, também não se dera o trabalho de trocar miudezas de crença com mulheres beatas, inda mais com o rosto mortiço da morte, apesar de ser a coadjuvante adequada à atmosfera densa de mofo, dos cupins nas frinchas dos assentos.

- Sim. – admitiu ele.

Admitiu experimentando o fel da mentira, mas crendo-se amoldado aos trajes inconfessos da opção pela vida clandestina. Foi o primeiro teste, pensou; e seria aprovado com louvor, caso fosse observado pelos camaradas que o instruíram a se fingir de estafermo, feito um camafeu sem graça.

Durante uma semana Afonso Nery sentou-se no mesmo banco da capela, no ângulo livre para apreciar a desfaçatez das imagens, incitando-o a se curvar à autoridade incognoscível da infinitude das nuvens cobrindo o sexo dos anjos.

A mulher – Generina -, por fim ele descobriu seu nome, convidou-o a sua casa depois de ouvi-lo confessar que há dois meses procurava trabalho. Todas as fábricas em cujo portão inquirira sobre as possibilidades de ser admitido, lera o frio aviso – Não há vagas.

- Também tenho um filho da sua idade. É operário em São Paulo. Reza na Igreja da Sé. Venha. Meu marido também é um cristão devoto. Não será contrário a acolher um filho de Deus precisando de ajuda.

A casa, inda que de alvenaria, não tinha forro; aqui e ali, entre uma telha e outra, um fio de luz solar riscava a escuridão das dependências – dois quartos, uma sala, cozinha, banheiro nos fundos da cozinha e um poço d’água no quintal sem árvores ou plantas. As paredes nuas da sala, do corredor, acentuavam a vacuidade da moradia; a firmeza das paredes sem marcas de sujeira, dava a impressão de ser uma casa nova, recém-construída.

- É a lembrança que o nosso filho caçula deixou. Ele foi atropelado. Nós recebemos o dinheiro do seguro e levantamos a casa – disse o marido da beata.
Na rua estreita do bairro operário, Afonso Nery experimentou, não sem ares de usurpação, o prazer de ser um morador antigo, vivendo a rotina imperceptível de ser o ferramenteiro de uma metalúrgica no mesmo bairro, o populoso Pirambu; desbastando barras de aço sob a lâmina da plaina, afiada por ele mesmo no esmeril elétrico. Como prêmio, o recrutamento mudo, sussurrado, de outros operários para o seu Partido. É possível, pensou Afonso Nery; se viver a rotina de operário é sorver o cheiro sem perfume, de paredes limpas, como o da casa do casal de beatos, não será difícil. Sentiu reavivar a busca, tornar curtos os próximos passos rumo à prática prazenteira da subversão exprobrada pela burguesia.

A rua, com a luz rala em postes distantes um do outro, logo se curvou ao costume miúdo do recolhimento em camas de colchão de palha seca. Afonso Nery conveio que, recolhendo-se no mesmo instante, também daria conta da aptidão à noite de descanso, longa, dos operários do lugar. Deitou-se numa rede, posto que não havia outra cama. Ouviu apenas os sussurros do casal no quarto, distinguindo a sonoridade arrastada de uma reza. Os dois, olhando para a imagem de um Cristo na parede.

O domingo passou-se com a mesma pachorra, sem ruídos na rua sem calçamento.

Segunda-feira, voltou à capela do Cemitério do Mororó, centro de Fortaleza. Pôs na mão direita uma caixa de fósforos, conforme combinara, para ser identificado e em seguida ser acolhido pelo Partido. Não olhou para a abóbada, visto que a beata Generina ficara em casa. Outra pessoa teria que lhe fazer uma pergunta cuja resposta desse conta de recusa ao uso de cigarros. Seria a senha.

Um moço usando tênis, calça e camisa cor cinza, cabelos soltos avessos a escovadas, inquiriu-o:

- Costuma rezar todos os dias?

Não houve tempo de responder. Outros homens entraram na capela. Afonso Nery olhou para a abóbada, para se acudir no Cristo imberbe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário