“A medicina perdeu a aura de profissão exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento”
Para o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, formação médica excessivamente voltada à especialização leva ao desinteresse dos jovens brasileiros pelo Mais Médicos
Ex-ministro da
Saúde do governo Lula e atual diretor-executivo do Isags, braço de saúde da
União de Nações Sul-Americanas (Unasul), José Gomes Temporão afirma que o
desinteresse dos profissionais brasileiros em participar do programa Mais
Médicos deve-se a uma formação médica excessivamente centrada na
especialização, afastando os jovens de uma ação voltada ao atendimento familiar
e preventivo. Sanitarista de formação, Temporão não antevê problemas de
adaptação aos 400 médicos cubanos que desembarcaram no Brasil no último fim de
semana. Quanto às possíveis barreiras na legislação trabalhista brasileira à
vinda dos profissionais, o ex-ministro argumenta que não há “vínculo laboral”,
mas apenas um acordo de cooperação trilateral entre o Brasil, a Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas) e Cuba. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista
a CartaCapital.
CartaCapital: Por que houve tão pouco interesse dos médicos
brasileiros na convocação do Mais Médicos? O senhor considera que haja um
desinteresse por medicina familiar e preventiva entre os profissionais formados
no Brasil?
José
Gomes Temporão: São múltiplos os
aspectos envolvidos. Em primeiro lugar o clima criado, no momento em que as
entidades médicas desencadearam uma guerra santa contra o projeto do governo.
Mas esse não me parece o fator central. Há muito a medicina perdeu aquela aura
de profissão nobre e única e exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento
humano. Transformou-se em um florescente negócio que envolve gigantescos
recursos financeiros em todo o mundo. Embora importante, o médico é uma peça
nessa engrenagem. Existe toda uma cultura do cuidado voltada para a
sofisticação tecnológica, nem sempre adequada ou necessária, o que acaba
colocando barreiras ao que se considera como exercício profissional
seguro ou em condições adequadas. Ao lado do fato de que médicos, arquitetos,
advogados etc. optam por trabalhar e viver onde possam ter segurança, conforto
e perspectivas de longo prazo na carreira. Por fim a formação médica fortemente
centrada na especialização precoce e na fragmentação da atenção entre
subespecialidades afasta os jovens médicos de uma ação mais holística e
centrada na atenção primária e na prevenção. De todo modo, deve ficar claro que
o Mais Médicos é uma proposta parcial, focal e que, por si só, não tem
potencial para mudanças substantivas no sistema de saúde.
CC: Como o senhor avalia a educação e a prática médicas
em Cuba? Acha que os médicos cubanos conseguirão se adaptar e fazer um bom
trabalho?
JGT: Cuba tem uma saúde pública de bom padrão com
indicadores de fazer inveja a muito países desenvolvidos. Eles possuem décadas
de experiência em trabalhos deste tipo em países da África e América Latina.
Não antevejo nenhum problema de adaptação à realidade dos municípios onde vão
atuar.
CC: Muitas críticas tem sido feitas à forma de
contratação dos cubanos. As bolsas no valor de 10 mil reais serão repassadas ao
governo cubano e os médicos devem receber entre 2,5 mil a 4 mil reais. Em
entrevista recente à CartaCapital, o senhor levantou o problema do tipo de
vínculo que será estabelecido com os profissionais, se será apenas uma bolsa ou
um plano de carreira na saúde pública, com perspectiva de longo prazo. Em
relação a vinda dos cubanos, como o senhor vê essa questão trabalhista?
JGT: Na realidade, a vinda dos médicos cubanos não se
caracteriza pelo estabelecimento de um vínculo laboral entre esses
profissionais com o governo brasileiro. É um acordo de cooperação trilateral
entre o Brasil, as Nações Unidas (OPAS) e Cuba, de caráter claramente
provisório e com o claro objetivo de, em caráter emergencial, levar serviços
médicos essenciais a quem hoje não dispõe deles. Claro que podem surgir outras
implicações neste tipo de relação que inclusive estão sendo analisadas pelos
órgãos de controle e da Justiça do Trabalho.
CC: No lugar do Revalida, os médicos estrangeiros serão
avaliados por professores de instituições públicas e aqueles considerados aptos
receberão um registro profissional provisório. Um dos argumentos a favor da
mudança é o de que o Revalida tem índices de reprovação altíssimos entre os
médicos estrangeiros. Como o senhor vê essa nova forma de avaliação?
JGT: É perceptível um evidente preconceito em relação
aos médicos estrangeiros e sua capacidade técnico-científica. Claro que a proposta
correta seria a de submeter todos esses profissionais ao Revalida. O
argumento de que o Revalida reprova muito e por isso não pode ser utilizado me
parece falacioso. Seu conteúdo deveria expressar o grau de conhecimento
necessário para aquele profissional exercer determinada função no sistema de
saúde. A opção do governo pela concessão de um registro provisório com vigência
apenas durante o período de 3 anos e atuação exclusiva na atenção
primária, tem a ver com o fato de que não se poderia restringir legalmente, do
ponto de vista do exercício da profissão, a atuação no setor público ou privado
e em qualquer local do território nacional, aos aprovados no Revalida. Se o
revalida fosse exigido para todos os estrangeiros, os que fossem aprovados
poderiam exercer a medicina em qualquer local e especialidade, tanto no setor
público como no privado. Isso vai contra a estratégia do governo de restringir
os locais de exercício apenas aqueles municípios definidos, apenas na atenção
básica e apenas no setor público.
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