Marco Albertim, no Vermelho
O oitizeiro não dá mais oiti, mas tem donos;
não pelo cheiro de suas folhas, cuja fresquidão se rendeu ao bodum de maçãs
podres ao pé da raiz. É a sombra descendo da copa para a calçada da Praça Dom
Vital, que infunde o sentimento de posse no juízo erradio do vendedor de maçãs.
Ele enche os sacos plásticos com dez maçãs, tem o cuidado de esconder no amontoado as feridas que alguns frutos têm, feito nódoas roxas, marrons. Não usa camisa, só a bermuda comprida, com uma semana de uso, cuja cor cinzenta se confunde com o piso estropiado da calçada. Mas se aboleta na maciez ensebada do banco curvilíneo que corta a praça; é dele o assento, que ninguém de juízo são vai sair do apartamento com piso lustroso para sorver o azedume de corpos suados, lustrosos de gordura.
Do vendedor de maçãs e da negra de short curto cujo zíper não sobe mais a partir do meio, deixando ver a calcinha vermelha com um furo da espessura de seu dedo apontador, sob o elástico da cintura. Não há razão para se prurir de pudores, visto que até as moças de família encurtam as roupas para dar conta da fartura que nutre os corpos e o juízo vão. O habitat da negra ainda é compartilhado por dois parelhos da mesma raça. Para legitimar a blusa amarrada logo abaixo dos peitos duros da negra, eles não usam camisa; crêem-se atores natos que dão vida à coreografia ruidosa, com mofos escondidos à pressa.
O entorno da praça está quase vazio; ninguém se tromba no ir e vir da pressa. Ficou mais fácil descobrir a alvenaria puída dos prédios de dois, três andares, paralelos às laterais do Mercado São José. O protético solitário dá conta de sua habilidade, com letras grandes, vermelhas, na parede cinzenta abaixo de sua janela. Ainda há protéticos? A pergunta não é vã, porque o homem que usa jaleco de dentista convencido de que é tão ou mais capaz que um odontólogo, deixa-se espremer pelo comércio de bijuterias e não suspeita de que é temporão no ofício. Sem encomendas, ele debruça-se no parapeito da janela; não está nas ruas ou na praça de comércio miúdo. Vê a negra e seus parelhos. Os três com pernas soltas e pés nus, têm do l ado, estendidas no arremedo de varal no canteiro escasso de plantas, bermudas e blusas de chitas diversas; zorbas e calcinhas se mostram como peças comuns a um cenário em extinção.
O protético de juízo também vadio não resgata o lambe-lambe sumido da praça, no meio, entre os fundos do mercado e a frente pequena, com uma porta e uma janela do Cine Glória. Resgata a coreografia ruidosa de putas e mequetrefes; à noite, compartilhando os cantos na mastigação de roletes de cana cortada ali mesmo; de dia, encafuadas nos grotões das enxovias dos sobrados, escapando uma ou outra para a compra da marmita com guisados nos boxes do mercado; voltando às pressas, feito reclusas flagradas no ato de evadir-se.
Ainda falta uma hora para o meio-dia. O parelho mais velho do trio sem sorte sumira prometendo não voltar de mãos vazias. Teve sorte o negro de torso largo; voltou com uma marmita de plástico, beiras estriadas, cheia de um mulatinho grosso, avinhado no charque; macarrão corado no rubor com cheiro de éter do colorau; arroz solto feito os cabelos da mulher; e molho, muito molho da galinha cozida; a farinha, ele as tinha guardada numa mochila de pano, onde a negra juntava as roupas ainda no varal. Comeram fazendo uso de uma colher de sopa; manuseio sinistro, sem medir as porções na boca a um só tempo voraz e falastrona. Não demorou cinco minutos o banquete à sombra do oitizeiro. As colheres, a marmita, lavados na torneira da praça, onde a mulher supõe ser a sua lavanderia.
O vendedor de maças juntara uns trocados. Ganha o suficiente para, à noite, bebericar numa birosca que teima na sobrevida do Beco do Sirigado; ali ele entorna uma aguardente familiar a seu olfato; a aguardente e o naco de charque que o birosqueiro fisga na panela de alumínio. Ele paga e deixa o resto dos trocados para pagar a fornecedora de marmita que o alimenta durante a semana; paga-a nos sábados, depois de certificar-se de que sobraram uns miúdos para a conversa mole sob a coberta de madeira do barraqueiro do Coque, onde mora com a mãe aposentada pela idade.
A tarde se arrasta preguiçosa. Às cinco o mercado fecha. O bodum de carnes cruas, peixes recolhidos às caixas frigoríficas e legumes murchos não surpreende os padres na clausura do convento da Igreja da Penha. À noite, leigos com vocação para padre destrancam o portal de madeira. Carregam um tacho de alumínio cheio de sopa de legumes recolhidos de ambulantes que comerciam na rua em frente.
O trio sem sorte tira proveito. O vendedor de maçãs, inquieto, prefere a cachaça misturada ao charque àquela altura mais apurado.
Justo o que eu procurava sobre porta de aluminio
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