O começo, a dúvida, a criação e os joelhos
Alessandra Leão, em Outros Críticos
Começar algo me parece vir sempre acompanhado de dúvidas diante das tantas possibilidades que se tem no horizonte. Por onde começar um texto, uma melodia, um novo repertório, um disco, um show? Como começar a criar? Manter-se no caminho ou romper e mudar de direção? Quais serão as novas ou antigas referências? Que trilha percorrer? São muitos os caminhos e eles me parecem ainda mais numerosos a cada novo ciclo.
Eu me deparei com muitas dessas questões para começar esse meu primeiro texto aqui no Outros Críticos. Muitos temas e assuntos à mente, mas decidi começar falando justamente dos (re)começos. Penso que compartilhar processos e trajetórias acaba, de alguma maneira, contribuindo com quem se encontra diante das mesmas dúvidas. Não tenho nenhuma intenção de supor ou sugerir que algum caminho seja o correto ou deva ser seguido, até porque acredito que o mais instigante na arte seja justamente o que cada obra pode ter de único e de particular. Interessa-me muito os processos criativos de outros artistas, os motivos que os levam à criação e os percursos que cada um desenvolve pra criar e para se reinventar; isso me ajuda a refletir sobre os meus próprios processos, motivos e percursos.
Clarice Lispector dizia que escrevia para se salvar. O escritor angolano Walter Hugo Mãe fala sobre “desaprender e reaprender a escrever” a cada novo livro. Saramago tinha a rotina de escrever uma página por dia, em média. Caminhar pelas ruas de São Paulo é quase parte da obra do músico Kiko Dinucci. O que seria da obra de Noel Rosa sem a boemia?
Em 1998, fui no ensaio do Reisado do Mestre Pitiguari, no interior de Alagoas, e eu com uma forte amigdalite e febre alta, fiquei no carro, não consegui sair, fiquei preocupada com o sereno… No meio da madrugada, não aguentei e fui lá ver de perto a brincadeira. Deparei-me com um casal de quase 90 anos dançando com espadas e comandando o brinquedo. Mestra Virgínia, mesmo com aquela idade e tendo levado uma mordida de cachorro na perna, caminhou quase 6 km da sua casa até aquele terreiro e já estava a algumas boas horas dançando sem parar. Naquela noite, com meus 18 anos, pude aprender o que nos move. É o mesmo que faz um mestre de Maracatu passar dias se preparando para uma sambada, onde terá que improvisar poesias por toda a noite. O que faz uma orquestra de Frevo passar meses ensaiando pra tocar nas ladeiras lotadas e quentes de Olinda. O que fazia Biu Roque, mestre de cavalo marinho, coco, ciranda e tantas brincadeiras, com mais de 70 anos, ser sempre o último a parar de tocar, já de manhã.
A arte é visceral. É uma necessidade do corpo, que toma a mente e a alma. Começa nas vísceras e quando passa pro racional, te pede pra escolher os caminhos. Reinventar-se também é uma necessidade e saltar no desconhecido é instigante e assustador ao mesmo tempo. Saltar é preciso, mesmo sabendo que em algum (ou vários) momento, o medo tomará os sentidos, que o racional vai berrar implorando pra voltar àquele velho lugar quentinho e aconchegante. Como diz Siba, em Preparando o Salto, “Depois do fogo restam só fumaça e brasas / E eu tiro as cinzas do meu peito nu / Daqui a pouco meus dois braços serão asas / E eu me levanto renascido e cru”. Todos os seus pelos irão se arrepiar… Mas saltemos, porque é como bem dizia a minha avó: “joelho arranhado, só tem quem brinca!”
Bons (re)começos pra cada um.
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