17 fevereiro 2014

A vida do jeito que é

Leviatã
Marco Albertim, no Vermelho

O vento rugiu de tal modo que alvoroçou toda a água do canal, de um lado e de outro. Inda que vizinha às águas do oceano, a água do rio, escura, gelatinosa, soçobrou assoviando, cobrindo a vegetação do manguezal de uma brancura prateada.


As folhas verdes das aningas, no meio do rio, vergadas sob o impacto do vento, deitaram no solo lamacento. Os troncos das aningas não se despregaram do chão, mas a metade de cada raiz ficou exposta, feito monstros saídos do chão movediço.

A balsa não afundou, por certo por causa do convés de manobra, todo de ferro, com duzentos metros de comprimento e cinquenta de largura. O piloto, no alto da cabine, foi obrigado a descer a janela de vidro. Não teve sorte, posto que as laterais se juntaram com tamanha força às bordas da janela, que o vidro se estilhaçou. Ele abaixou-se na cabine; queria descer para o convés, orientar os motoristas sobre como deviam se portar, segurando-se nos ferros do abrigo de transeuntes sem carro; e deixarem, se fosse o caso, que os veículos fossem arrastados para as funduras desconhecidas da água pesada do canal. Ainda conseguiu chegar à porta de sua cabine, em frente aos primeiros degraus da escada helicoidal; com força, abriu a porta, uma chapa de ferro já carcomida pela ferrugem. Mas não conseguiu sair para o convés. A distância para o abrigo dos transeuntes, inda que curta, tinha um vácuo suficiente para que ele fosse levado pelo sopro raivoso do vento. Entreviu, com os olhos semicerrados, os homens segurando-se nos ferros do abrigo. Rostos crispados de susto, sem gritos, o pânico em toda fisionomia.

O pilotou voltou a subir para a cabine; com cuidado, veria pela janela sem vidro, os homens se protegendo cada um a seu modo, o balanço dos veículos na trepidação das águas revoltas. Numa gaveta, sob as maçanetas de comando da balsa, pusera o único exemplar de uma bíblia que fora presente de sua mãe." Quem pôde afrontá-lo e sair com vida debaixo de toda a extensão do céu?

....Quem lhe abriu os dois batentes da goela, em que seus dentes fazem reinar o terror?...... Quando se levanta, tremem as ondas do mar, as vagas do mar se afastam." Não abriu o exemplar do Velho Testamento, mas lembrou da passagem do livro de Jó, onde há a descrição minuciosa do poder destruidor do leviatã.

Com esforço, sem afastar o pânico da mente em transe, levantou a cabeça; não para velar pela segurança dos homens, àquela altura, conforme ele, também imaginando a fúria do leviatã que súbito acordara. A balsa se desviara de seu curso de rotina. O motor deixara de emitir o ruído preguiçoso, sonolento; agora, as máquinas emitiam um soluço a cada minuto, feito um carro dando sinais de enguiço. O vento, sem forças para virar os dois mil quilos de ferro da balsa, empurrou-a a partir de um lado de seu comprimento. As águas do oceano se imiscuíram com a água do canal de Pontinha, na divisa entre Pernambuco e Paraíba.

A balsa atracou distante da plataforma de cimento, por onde desciam e subiam os passageiros. Súbito o vento amansou. Os homens abriram os olhos como que despertos do pesadelo. Na beira do canal, os barcos lagosteiros sobreviveram jogados para fora da beira do rio, revirados e em destroços.

Luiz Varela, único tripulante da balsa, pouco se importou em recolher o comprovante de pagamento dos passageiros. Correu para sua casa, onde deixara, como de costume, a mulher e a única filha resultante de dez anos de casamento. A casa, ou o que restou dela, ruíra na margem do rio estreito, afluente do canal. Em volta de tijolos, telhas, madeiras e uns móveis em trancos, a multidão observava curiosa.

- É a mulher e a filha do crente Luiz Varela - ele ouviu e não demorou a acreditar.

Possesso, voltou para a margem do canal. Trouxera a bíblia numa das mãos. Ao lado da balsa tão familiar a seus olhos, levantou os olhos para o firmamento já desfeito de nuvens escuras.

- Não estás satisfeito!?

Ouviu o silêncio do cenário morto e arremessou a bíblia para longe, por certo bem perto do leviatã.

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