11 março 2014

A vida do jeito que é

O fim de Anacleto Padilha

Marco Albertim, no Vermelho

O velho morreu de infarto; inda que de modo tão apoplético, não foi esse o retrato mais vivo que deixou de sua memória. Quem conviveu com Anacleto Padilha, tem-no com a cabeça nua de cabelos, a fumaça do cigarro escoando por um canto da boca, sem o esforço de um sopro, para dar lugar à catilinária raivosa, tão a seu gosto, contra balbucios de esquerda contrários à ditadura.

No primeiro casamento, depois de emprenhar a mulher por três vezes, convenceu-se de que para gerir a família, bastaria sentar-se à mesa e exigir a refeição com um ou dois esguichos de autoridade. A mulher tolerou-o por doze anos, resistindo sem brigas, com muxoxos quase mudos. Sem coragem para deixá-lo, sem quentura nas entranhas do sexo e com o juízo num amante imaginário, deixou-se enredar por um varão real, com sêmen escorregadio, sem ereções apressadas.

Não demorou e Anacleto Padilha desconfiou da abstinência da mulher, na cama das núpcias. Ela, por fim, não suportando o azedume do marido, e ainda mais porque ele se dera ao costume de fumar cachimbo, misturando às palavras o cheiro de esterco do sarro, confessou ter outro.

Não que ele não acreditasse, mas optou por continuar nutrindo a crença na superioridade pessoal em relação a Arminda Padilha. Arminda Padilha, a quem ele, por direito consuetudinário, concedera o nome de sua linhagem; na manhã de um sábado promissor, com o tabelião na sala de sua casa, ungido pela curiosidade da freguesia de Beberibe que, sem ir à feira, optara por ser testemunha das bodas de Anacleto Padilha. No solar onde ele nascera, e onde seu avô dera boas-vindas a Plínio Salgado e à comitiva de galinhas-verdes.

Por se crer com direito ao mando nas escolhas de cada um, ou de quem se deixasse cegar pela cintilação de sua calvície, não creu na escassa confissão de Arminda Padilha. Ela assim o fizera para se manter no hábito de se deixar submeter pelos ditames do marido. Com o tempo, negando-se a cumprir com os deveres conjugais, nem dando conta de bulício nas entranhas do sexo, Arminda Padilha resolveu apear de tudo, do leito já estranho a seus sentidos, e da mesa de refeições, incomodada com o brilho oxidante na calvície dele.

Restou a ele um resíduo de autoridade, um apelo de onde pudesse espremer da mulher, a confissão de que encenara o adultério para obter dele a posse de suas escolhas domésticas, até do dia em que pudesse fornicar só depois que Anacleto Padilha escovasse os dentes para remover o fartum de esterco na boca. Caso ela insistisse... ora... ele murcharia os ombros, fecharia a cortina da janela do quarto para o sol não incidir em sua calvície cegante.

Arminda Padilha manteve-se muda, dizendo tudo com os olhos. Ele, depois de insinuar e em seguida sem medir as palavras, ameaçou-a com a possibilidade de deserção dos bens.

- Adultério é crime! – gritou Anacleto já sem saber o que dizer.

Só os três filhos acompanharam a mãe ao portão da frente do solar de Beberibe. Nenhum deles desdisse das vantagens que a mãe entrevira, e agora assentada na decisão amadurecida, de ser feliz com Antônio Leocádio, português proprietário da única padaria de Beberibe. Anacleto Padilha trancou-se no quarto e fechou a cortina da janela, certo de que a maciez de sua calvície perdera o poder de sedução.

Um ano depois vendeu o solar, para evitar o olho intrigante da vizinhança. Mudou-se com a filha e os dois filhos para o Fundão, ali perto. No escritório da Usina Paranhos, foi promovido a gerente, frequentando os saraus do usineiro, no Espinheiro. Logo ganhou uma carteira de agente do DOPS, e não demorou nutriu-se de ódio pelo arcebispo Dom Hélder Câmara.

- Bispo vermelho!

Numa noite, Anacleto Padilha viu Dom Hélder na televisão. Acendeu o cachimbo; no fim do terceiro sorvo, não se conteve.

- Bispo vermelho!

A fumaça esvaiu-se lenta de sua boca, ao contrário da rapidez da apoplexia. Amparo Padilha, a segunda esposa, ficou sem entender.

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