A peteca e o livro
Luciano Siqueira
Artesã de profissão, de parcos recursos e muita curiosidade literária, trazia à mão uma peteca e disse alguma coisa a princípio incompreensível. E, num gesto surpreendente e ao mesmo tempo simples como o desabrochar de uma rosa, ofereceu uma peteca em troca do exemplar do livro de crônicas que estava lançando, "Como o lírio que brotou no telhado", coletânea de textos originariamente publicados nesta coluna no portal Vermelho.
- Folheei o livro, tem coisas bonitas, fala de experiências de luta, tenho interesse em ler, mas o dinheiro está curto... O senhor aceita trocar um exemplar por essa peteca?
- Claro, minha querida! Será um prazer, acredite.
Na dedicatória, escrevi “um afetuoso abraço e a crença sempre renovada na força e na arte do nosso povo”, como uma homenagem àquela inesperada e comovente leitora.
E a troca estava consumada. Uma espécie de escambo cultural.
O sorriso tímido deu lugar ao espanto quando soube que o autor do livro, vice-prefeito da cidade, ao sair da cadeia e retornar ao Recife, no final da década de setenta, sobreviveu dois anos e meio como artesão de bolsas de couro, que vendia aos domingos, na feirinha de Boa Viagem, enquanto dava sequencia ao curso médico na Universidade Federal de Pernambuco (arbitrariamente interrompido em 1969, por determinação do regime militar).
Faltou dizer que o artesão-estudante de medicina muitas vezes chegou à enfermaria do Hospital das Clínicas Dom Pedro II com as unhas tingidas de matizes escuros, porque virara a madruga cortando, costurando e pintando e mal dera tempo para a remoção da tinta Enigma.
Nem deu para comentar que o estudante de medicina sentia orgulho do seu ofício, tanto que no registro de nascimento da primeira filha, Neguinha, consta exatamente artesão como profissão do pai.
Também não foi possível dizer que justo no ponto de vendas da feirinha típica de Boa Viagem foi possível reaglutinar companheiros e amigos dispersos e retomar a estruturação do PCdoB em Pernambuco, desarticulado pelas prisões ocorridas no início de 1974.
Depois o artesão se converteu em jornalista, assumindo a chefia da sucursal do semanário Movimento, que fazia oposição à ditadura, a convite de Raimundo Rodrigues Pereira, função que tocou até concluir o curso na Faculdade e iniciar o exercício da nova profissão.
Da experiência de sobreviver do artesanato ficou a clara percepção do valor do trabalho criativo que o artesão realiza sobre a matéria bruta. Por isso não cabia verificar se a peteca e o livro têm o mesmo valor, quando ela teve a gentileza de comentar:
- Não sei se essa peteca vale o livro, mas é o que tenho para trocar.
Claro que têm o mesmo valor, pois semelhantes são as mãos que fazem a peteca e as muitas mãos que constroem a História, objeto das crônicas contidas no livro.
(Publicado no portal Vermelho www.vermelho.org.br em 22.06.06)
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