21 abril 2014

Tempo de resistência

Clandestinos e revolucionários

Por Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, na Carta Capital

A clandestinidade política foi a alternativa que muitos militantes de esquerda encontraram para continuar no país, combatendo a ditadura civil militar entre 1964 e 1979. Todas as organizações políticas colocadas na ilegalidade tiveram muitos de seus militantes presos, torturados e assassinados. Muitos foram banidos, muitos se exilaram. Mais de uma centena de brasileiros continua desaparecida. Um contingente significativo permaneceu dentro do Brasil.

Seu objetivo: combater os ditadores, resistir em luta contra os avanços de um governo discricionário e fascista, denunciar as violências cometidas, chegar mais perto do coração da ditadura e feri-la de morte. Tornaram-se clandestinos, nos nomes, nos rostos e em sua documentação pessoal. Deixaram suas escolas, universidades, profissões e ofícios. Deixaram suas casas, seus bens, suas roupas.

Formaram a coluna vertebral de resistência à ditadura. Reuniram-se febrilmente, fizeram planos estratégicos e de ação. Brigaram entre si e abraçaram-se como nunca. Cada despedida talvez fosse a última. O amanhã era absolutamente hipotético. A certeza do futuro terminava a cada pôr-do-sol. Tinham sido alijados das fileiras dos cidadãos brasileiros, cassados como profissionais, jubilados como estudantes, demitidos sem explicação, perseguidos na fábrica e com os contratos de trabalho suspensos ou encerrados. Foram incorporando ao seu jeito, o anonimato. Jovens mulheres precocemente taciturnas, sonhos de vida familiar adiados, sonhos de maternidade interrompidos. Nenhuma certeza de construir com tranquilidade um futuro.

As restrições impostas pelas sucessivas Juntas Militares a partir de abril de 1964 foram diminuindo o espaço de atuação política legal. Partidos políticos dissolvidos, organizações políticas declaradas ilegais, sindicatos, universidades, associações de classe e entidades estudantis fechadas e invadidas. Restou à militância sair do país ou permanecer nele; tinham poucas alternativas se quisessem continuar a ser militantes políticos organizados dentro do país. Neste aspecto, a escolha da clandestinidade era uma questão de sobrevivência, decorrente da condição de perseguido e considerado inimigo pelas forças que assaltaram o poder. A outra alternativa seria sair do país, exilar-se ou desistir da militância. Para alguns havia a hipótese de permanecer na legalidade em seu local de trabalho, no seu sindicato, na cidade ou no campo, desde que pudessem manter preservada a condição de militante não localizado pela repressão.

Decisão radical

No âmago do Brasil, pulsava a clandestinidade. Às vezes armada na cidade, às vezes armada no campo. Às vezes não-armada. Convicta de sua condição de combatente, sabendo-se perseguida pelas armas militares, muitas vezes foi espreitada pela violência policial e militar e sistematicamente aviltada quando presa. Os ditadores não se constrangeram em torturar até à morte, em prender militantes com seus filhos e prender mulheres grávidas. A clandestinidade tornou-se no primeiro momento, única possibilidade de defesa e de sobrevivência do militante localizado pela repressão. Cair na clandestinidade, de início, era sair da cena legal, uma defesa da própria vida e da Organização.

Permanecer clandestino durante cinco, dez anos ou mais, foi uma alternativa que envolveu uma escolha que não era livre, porque era uma escolha dentro de uma situação de catástrofe política, determinada pela situação de excepcionalidade do país. Em alguns casos esses militantes poderiam sair do país e exilar-se. Esta alternativa existiu para alguns. Houve casos em que o militante saiu do país, exilou-se e depois voltou para ficar clandestino. A decisão da clandestinidade envolveu a escolha de um destino muito mais complexa do que supôs qualquer um que se viu frente a ela a partir de 1964. Aos vinte anos de idade, um pouco mais ou um pouco menos, comprometer-se com a luta de resistência, abandoná-la ou sair do país, não era simples ou fácil. A distância entre a decisão tomada e suas implicações foi muitas vezes maior do que supuseram os militantes e suas teorias revolucionárias. A própria adesão à alternativa colocava cara-a-cara o militante com seu destino coberto por uma longa e nebulosa noite. Ele teria que firmar e reafirmar, assinar e subscrever a escolha que fez. A escolha de uma decisão que envolve um destino não é um ato solitário, lúcido e consciente. Marcelo Viñar diz que “o sujeito substantivo da decisão encontra-se nos confins do próprio ser – onde algo próprio e alheio, familiar e estranho nos impele em uma direção e nos puxa para outra. Este processo deixa uma inscrição, um traço, uma marca universal e necessária.”¹

A clandestinidade contava com uma variável conhecida: permanecer em território pátrio. Em segundo lugar, tinha um objetivo determinado: participar da luta de resistência e de combate ao inimigo. Logo, a liberdade de ir e vir, conviver com os amigos e familiares é substituída pela liberdade de continuar a defender as mesmas ideias de outro lugar tornado escondido dentro do próprio país. O clandestino lida o tempo todo com a contradição entre desejar fazer e não poder, desejar ir e não poder ir.

O que em última instância o contém é a certeza do perigo de ser descoberto e o que o mantém clandestino é a reiterada tentativa de aceitar a escolha que fez. O clandestino não está submetido a espaços materiais inacessíveis. Ele não está preso, não está fora do país e poderia bater à porta de sua família.

Abraçar os pais, carregar no colo os novos membros da casa, mas não pode porque escolheu, porque decidiu, porque assinou a passagem à clandestinidade e sobretudo porque se o fizesse estaria arriscando-se a ser preso, a ser morto, vulnerando sua Organização. O pacto com o escondido com o não revelado, teve significação própria a cada clandestino. Aos poucos vai percebendo que não é mais dono do seu tempo e de suas decisões, e sente-se isolado. É para estas perguntas que o militante clandestino terá que dar novas respostas. Uma delas consiste em subscrever seu compromisso de adesão que discute com seus companheiros de organização; faz revisão-de-vida como se estivesse em permanente supervisão. Talvez este processo que na época chamava-se revisão de militância tenha sido responsável pela irmandade que foi sendo construída entre os militantes políticos e os longos laços de amizade que ainda hoje permanecem.

Ser clandestino supõe um disfarce. O disfarce era o jeito que os clandestinos encontraram de mudar sua imagem em relação à aparência física. Objetivo: driblar a polícia municiada de fotos e descrições recolhidas nas documentações pessoais e fichários da polícia política. O disfarce era a essência da nova imagem física. A escolha do disfarce era uma das poucas possibilidades de se dar asas à imaginação dentro dos parcos recursos para providenciá-los. Havia ainda a escolha do novo nome. Nomes sem sobrenome, simples designações. Podiam ser simplesmente Maria ou José.

Podia ser qualquer um. De tempos em tempos, esses nomes mudavam. Até hoje, alguns militantes tratam-se pelos nomes frios. Nomes-homenagem foram dados aos filhos. Havia um repasse para o filho, da homenagem que os pais faziam e de lembranças que deveriam permanecer. Entre muitos clandestinos, ocorreu este ato de homenagem, sobretudo a companheiros que tombaram em luta. Outros deram para seus filhos, depois de saídos da clandestinidade, os nomes frios que antes tiveram. O disfarce é uma herança mitológica, uma forma de astúcia para os que dele fazem uso frente a uma situação adversa e de perigo. Conta Homero na Odisséia que quando Ulysses e seus companheiros chegaram à ilha dos ciclopes foram surpreendidos por Polifemo. Uma pedra enorme fechou a saída da caverna em que se abrigaram e o gigante ia comendo um a um.

Amolecido pelo vinho que lhe deram, Polifemo perguntou a Ulysses: – Como te chamas? – Meu nome é Ninguém, respondeu. Marcelo Viñar comenta a resposta de Ulysses: René Mayor que conhece o grego melhor do que eu diz que quando Ulysses responde à pergunta, “quem és” e responde a Polifemo, “Ninguém” (Oudeis em grego), avizinha-se de seu próprio nome (Odysseus). É esta vizinhança entre o Eu e o Ninguém que sublinha a qualidade inquietante de quem assina e subscreve uma decisão radical de seu destino.

Como uma pele

O disfarce: destinos não-sabidos. Quando o clandestino escolheu o disfarce, imaginou que poderia não ser localizado e preso. Neste aspecto a identidade fria criava a condição de passar por eventuais barreiras ou revistas. Porém, quando a polícia prendia um militante clandestino, sabia que, exatamente por isso, poderia não revelar sua prisão e nem comunicá-la à família. A família não conhecia o nome frio que constava da clandestina identidade, sendo muitas vezes informada, pelos órgãos de repressão que não havia nenhum familiar em dependências policiais. A identidade clandestina foi usada contra o militante para prender, matar e fazer desaparecer. Muitos desaparecidos são militantes clandestinos que a polícia enterrou com os nomes frios e pior, enterrou-os como indigentes em valas comuns, sem nenhum nome. Outros desaparecidos sequer foram enterrados. Até hoje sua passagem pelos corredores da tortura é negada. Raramente a polícia prendeu qualquer clandestino sem saber que estava prendendo um militante político. Ao colocar-lhe o capuz já dizia: você é fulano de tal. Em relação à sua vida própria, o destino do disfarce é interno. Os militantes que viveram muitos anos clandestinos foram obrigados pela própria perseguição a afastar-se de sua profissão e ofício, de seu círculo familiar e dos amigos e impedidos de seguir seus projetos pessoais e profissionais.

Vão ficando à margem do vertiginoso avanço da ciência e da tecnologia, mergulhados no seu próprio país que lhe era hostil. Homens e mulheres brilhantes foram tirados da cena da elaboração do pensamento teórico e político no Brasil. Uma instigante geração de jovens lideranças adiou por muitos anos sua reinstalação profissional e pública. Este preço provavelmente o clandestino jamais imaginou que tivesse que pagar. A recuperação da cidadania após a vigência da ditadura civil militar encontrou homens e mulheres com seus anseios calcinados. O clandestino teria que procurar entre cinzas, a pequena fagulha que lhe ajudasse a reacender sua vida cidadã e pessoal. Muitos conseguiram. Certamente há quem não tenha encontrado forças para fazê-lo. Os embates do isolamento criaram novos eremitas, um jeito próprio de ser, reservado, ensimesmado, dentro do país que ajudou a tornar livre. O investimento para sair plenamente da clandestinidade é muitas vezes indizível. O retorno à legalidade, a reintegração após a prisão, ser cidadão de uma nação reerguida à custa de seus melhores anos de juventude e de seus sonhos, à custa do sacrifício e do desaparecimento de companheiros de luta, é um caminho permitido e anistiado. Para muitos a clandestinidade enraizou-se nos caminhos da sua alma. Dificilmente se saberá quantos brasileiros foram clandestinos. Durante quanto tempo foram clandestinos. Alguma coisa colou-se, como uma pele, sobre seu coração. A clandestinidade juntou-se à sua memória, como uma névoa que permanece.

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Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes é conselheira do CRP-SP e Coordenadora Geral de Combate à Tortura, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República

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