Marco Albertim, no Vermelho
O anel no dedo de Ranúsia tornou-se um estorvo
em sua mão. O brilho do ouro com o rubi ainda não desbotado, que servira para
avivar ainda mais o afeto de Bruno por ela, cegou-a na apreciação que fizera de
si e dele. As mãos, os braços, os ombros finos, torneados, logo moveram-se
sinistros. O organdi branco com desenhos de pétalas corais, abaixo dos joelhos,
perdeu o efeito remoçante em seu corpo esguio.
Nem mesmo a pouca luz da rua à noite, escondeu a revolta convulsa nas entranhas de Ranúsia.
- Tome de volta seu anel. Antes que eu jogue ladeira abaixo.
Se ela despedaçasse-o sob os pés, Bruno não faria nada, só os olhos quietos, olhando para o chão, assentindo com a legítima revolta de Ranúsia. Ele segurou o anel e também se deu conta da inutilidade do lume irradiado que abrira o caminho, conforme creram, para a parceria dos dois.
Conheceram-se pela primeira vez, sem lumes de ouro nem o brilho do rubi; conheceram-se na mais cinzenta clandestinidade. Ranúsia misturando na voz a convicção de que a fortuna de ser militante, não demoraria em contemplar-lhe com o comando de um destacamento revolucionário, na guerrilha ou à frente da multidão insurreta. As sardas sob os olhos miúdos, Bruno lembrou-se, salpicando larvas de energia no reclamo de sedição de Ranúsia.
Encontravam-se à luz do dia, andando sem parar para não chamar a atenção da polícia; conspirando, é certo, sem sentar em bancos de praça nem ficar no encosto de um algum poste ou sob qualquer marquise. Quando desceu do trem na estação de Maceió, ela recebeu-o. Não o conhecia, mas sabia que o moço que escapara da polícia em Recife, usaria no lado direito da manga curta da camisa branca, o fumo do luto de morte não ocorrida.
Agora, Ranúsia fez questão de empertigar-se para dar conta da severidade da crítica à leviandade de Bruno no trato dos sentimentos dos dois.
- Vamos nos reunir para tratar do assunto - ele apelou, tentando refazer-se, mostrando que não deixara escapar pelos poros o sumo da moral proletária que ouvira inclusive de Ranúsia.
- Vamos reunir o coletivo para tratar um assunto de foro individual?! Não. Você não será julgado pela história. Já está sendo julgado pela luz escura dos postes. Tem o privilégio de esconder as rugas do remorso. Ninguém está vendo.
- Sinto remorso. Não sinto pena. Seria outro insulto a você se suspeitasse que eu sinto pena.
Atrás dos dois, Mirian, Volgran e Charles caminhavam a uma distância que não permitia ouvir a conversa de Ranúsia com Bruno. Os três adivinhando cada palavra. Mirian saíra do baile com a promessa de Bruno, de que logo seria seu parelho, depois da confissão a Ranúsia. Charles, àquela altura rendido à prostração de não ter confessado a Mirian os urdumes de amor por ela, pôs em dúvida até mesmo a crença de que teria ainda força para reverberar contra a ditadura. Volgram entreviu a chance de mostrar a Ranúsia seus dotes catilinários, na mesa de reuniões e no jorro não menos denso do sêmen.
O fumo negro no braço de Bruno, inda que só num braço, emprestou a ele a aparência de um roceiro cuja mãe morrera sem pôr termo à educação do filho; daí em diante, pusera-se a caminhar com passos curtos.
- Onde vou ficar? - Bruno quis saber de Ranúsia.
- Vai morar numa república de estudantes.
- O que vou dizer a eles?
- Diga que saiu do Recife porque não quis se casar com a namorada que está grávida de você.
A esperteza de Ranúsia teve o efeito de picar a curiosidade dele sobre a militante e a fêmea.
Encontraram-se três anos depois. O reencontro deu lugar à apreciação mútua. O anel de presente veio em reconhecimento.
Os cinco se reuniram no lugar de sempre, na mesa com marcas de queima dos cigarros de Ranúsia.
Como secretária política da base, a rotina impunha a Ranúsia a abertura da reunião. Mas Bruno pediu para começar, certificando-se que o anel permanecia preso no bolso de sua algibeira.
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