Portinari
O negro Zildão
Marco Albertim, no Vermelho
Por toda a extensão da
orla, as escavadeiras deixaram um sulco comprido. À medida que a escavação
avançava, sacos de náilon, vazios, se sobrepunham. Em seguida, o tubo alongado
de borracha, acoplado à torneira da betoneira na parte de trás do caminhão, despejava
a mistura de concreto ainda mole, numa abertura em cada saco, cujo diâmetro
coincidia com o do tubo.
Cheios, os sacos tornavam-se colchões bojudos de
cimento; um em cima do outro, logo se mostravam semelhantes a arquibancadas de
estádios. Primeiro a escavadeira abria o caminho, não importando se encontrasse
pela frente muros residenciais, bares à beira-mar ou mesmo uma singela peixaria
onde a vizinhança de classe média se provia de prateadas carapebas, de róseas
ciobas.
O negro Zildão há trinta anos estabelecera seu
negócio de pescados na beira da praia. Tornou-se conhecido pelo torso largo, o
rosto com salientes bochechas de comum acordo com os peitos largos, acolchoados
de músculos. Chegara aos sessenta anos e não perdera a robustez, inda que com a
gota corroendo-lhe os dois tornozelos, forçando-o a cobrir as feridas
chaguentas com rodilhas de algodão sob panos finos.
Com a marcha ininterrupta das escavadeiras, Zildão
deu conta de abespinhamento no juízo. A gota formigando nos pés, nas pernas,
juntou-se ao ruído importuno da betoneira girando. Confessou, então...
- Ninguém vai me tirar daqui. Meu pai nunca foi
preso. Quando a polícia corria atrás dele, ele se virava num toco de pau. A
polícia ficava zonza, sem saber onde ele tinha se metido.
A gorda com quem se amigara assentia com o juízo
entregue ao negro de quadris ameaçadores, sêmen espesso.
- Com quantos anos ele morreu? – quis saber a
vizinha, também com negócios de peixes nos fundos da peixaria do negro.
- Com oitenta anos.
A vizinha, com tumescência na barriga e palidez no
rosto, punha-se servil, aduladora, rendida ao tronco lustroso, negro, de
Zildão.
- Pois você não vai morrer antes dessa idade. É a
herança que seu pai deixou.
Choveu na mesma noite. O barco de Zildão foi
ancorado pouco antes da meia-noite. Mimo, único filho da confiança do negro, e
mestre do barco a motor, despejou junto com dois ajudantes, proeiros, a caixa
de isopor cheia de carapebas, ciobas, dentões, albacoras e garajubas. Os
peixes, depois de pesados, foram depositados nos dois freezers da peixaria.
- Pai, na entrada do maceió, a maré já derrubou a
barreira de cimento da obra.
- Essa obra não tem futuro. Ninguém pode com o mar.
Só Deus.
- E amanhã? – perguntou súbito o filho.
- Amanhã à noite vai ser de maré baixa. Traga o povo
para fazer a cerimônia.
Na manhã seguinte, os peixes foram vendidos. O
frescor do pescado recém-capturado chamara a atenção da vizinhança, já
acostumada aos horários de saída e retorno do barco de Zildão. A gorda, no
começo da noite, quis soltar rojões na frente do boteco de sua propriedade,
junto à peixaria. Os dois dormiam num quarto atrás da parede do boteco; ali
coitavam, ali a gorda fazia reparos nas feridas do macho.
- Não, agora não. Quando começar a cerimônia.
À meia-noite a negrada paramentada de branco deu
conta do propósito de homenagens a iemanjá.
O babalorixá, tão bojudo quanto Zildão, agitou na
mão direita um sino de ruído agudo. Deu a permissão para que os ajudantes
entrassem na água carregando o vaso de barro com oferendas. Mimo, segurando o
leme do barco, acolheu-os sem esconder o suor do rosto, a vermelhidão nos olhos
depois do sorvo da liamba. Zildão ficou na beira da água. Convencido de que
gozava de proteção da iabá, jogou um monte de moedas na água.
A tia, irmã do pai do negro, atestou os poderes
transformistas da família.
- Não se preocupe, meu filho. Com a força de
iemanjá e o sangue de seu pai, ninguém vai lhe tirar daqui.
- Tenho fé em Deu, tia.
A gorda,ouvindo, ordenou a detonação dos rojões.
Choveu toda a madrugada, choveu de a água socar com
bordoadas o teto de zinco do negro Zildão. A gorda acoitou-se sem medo nos
músculos dos ombros do parelho.
O dia mostrou os sulcos abertos pelas escavadeiras
cobertos de água, da mesma areia removida para cima e para baixo da beira do
mar. A escavadeira, a do pelotão de frente, mirando a peixaria do negro,
atolou-se no charco. O coqueiro na frente caíra com a tempestade; o olho com
palhas e cachos de cocos, destroçara a cabine do operador da escavadeira.
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