Perfume chifrim
Marco Albertim, no Vermelho
Com a chuva não prevista, a planura do pequeno vale abaixo das duas
casas, a de moradia e a de farinha, foi coberta por um lençol d'água cuja força
de destruição só não foi sentida, porque não havia plantio. Mas o capim verde,
da altura da cintura dos homens abrigados na casa de farinha, ficou apenas com
os olhos acima da superfície da água. O riacho sumido, não fosse a mira dos
camponeses sobre o tamanho e os recursos da terra, deixou uma lembrança cuja
promessa de reaparição renovava-se em medida igual às águas da chuva que o
cobrira.
Não era um
vale fundo, mas o barranco de terra nivelado dando apoio às duas casas, os dois
lados de rodovia em volta e uma estrada de piçarra vermelha com acesso
principal na rodovia, punham o vale abaixo dos olhos de quem o olhasse. Nas
encostas dos lados, com exceção do barranco, uma comprida e rala mata de
bambuzal dificultava a visão de quem o enxergasse de cima.
Os homens se
arrancharam na casa de farinha, meio sonolentos. Na curta madrugada, com os
olhos fechados, tiveram tempo de descansar e tiraram proveito para urdir sobre
como as braças de terra seriam medidas e distribuídas.. Encostaram-se nos lados
do forno sem uso; outros, com as roupas meio estropiadas, os fundos sujos da
poeira nos assentos, sentaram-se na bandeja do forno.
Os mais
pobres, alguns com camisa com apenas dois botões para fechar os lados, não
tinham chapéu. O resto, inda que com aparência melhor, não tinha posses mas as
calças inteiras estavam apenas machucadas, e as camisas tinham botões de cima a
baixo; o que mais os distinguia era o chapéu de feltro com a cor esmorecida;
nunca o tiravam da cabeça, a não ser para dormir. Com o dia, entre um palpite e
outro sobre as chances de se tornarem donos da terra, os que tinham mais prumo
nos urdumes removiam o chapéu para um dos lados ou para trás, onde
os dedos coçavam com preguiça e distraíam algum traço de desconfiança na fronte
de quem ouvia.
A mulher que
aparecera na porta da casa atraída pela fumaça cheirosa do café no bule de
ágata, primeiro enxergara nas brasas dos gravetos entre três seixos no chão, o
lume que podia avivar-lhe os olhos rendidos à pasmaceira do brejo
deserto. Trouxera um banco de madeira da casa; a madeira do assento há muito
perdera a cor, e mantinha-se lisa, encerada pelo uso dos primeiros donos da
casa. Sentada, ela ouviu a primeira pergunta e manteve-se indiferente ante a
possibilidade de sentir as entranhas da alma expostas.
- São
filhos da senhora?
- Não.
Podia se
manter reticente ou mesmo não responder, visto que até então se mantivera
encoberta, rendida às recusas até mesmo da paróquia de Vitória de Santo Antão,
onde, quando as pernas recobravam força, ganhava de um ou de outro uma sobra de
comida. Mas os homens haviam consentido que requentasse as entranhas com o café
quente. Acrescentou:
- São meus
netos. A mãe está em Vitória. Só vem aqui quando tem recurso para fazer uma
feira e trazer comida para os filhos.
- E a casa?
De quem é a casa?
- Não sei
não. Sei que morava uma família aqui com a permissão do dono. Viviam da mandioca
que plantavam na beira do riacho. Mas o dono do Engenho Bento Velho
proibiu a plantação e fechou a casa de farinha.
- O dono do
Engenho Bento Velho sabe que a senhora ocupa a casa?
- Sabe. Só
deixou porque eu disse que não tinha intenção de plantar.
De nove
horas em diante, as terras do vale absorvedor moveram-se para engolir as águas.
Depois do meio-dia, só a margem do riacho se manteve coberta por uma lâmina
transparente de água. O viço do vale juntou-se ao cheiro do feijão cozinhado na
mesma trempe que fervera o café. Antes do almoço, Joaquim e Tonico, os mais
moços, viram a chance de pôr a assinatura na ocupação.
- Tonico. -
ordenou Joaquim - Está na hora levantar a bandeira.
Tonico
desceu o barranco com habilidade nas pernas finas. Num outeiro à frente
da margem do riacho, enfiou a vara depois de afiar com a faca o gume da base.
Em cima, a bandeira vermelha do MST tremelicou feito os galhos do bambuzal no
vento.
No fim da
tarde, o mesmo caminhão que os trouxera da feira de Vitória de Santo Antão, estacionou
na margem da rodovia. Lonas de plásticos foram distribuídas para a construção
de barracas enquanto o plantio tivesse curso.
Na estrada
de piçarra, uma mulher descera de um cavalo enquanto o homem que a trouxera
permaneceu na sela. Com o chapéu na cabeça, o relho na mão direita e o
olhar duro, viu a mulher cruzar o vale rumo à casa de farinha.
- É o dono
do Engenho Bento Velho - disse a velha.
A mulher
tirara as sandálias de couro. À medida que se aproximava, distinguiram o batom
encarnado nos lábios finos, o ruge no rosto sem covas. Um par de brincos à
mostra, com brilho duvidoso. De resto, um perfume tão chinfrim quanto o vestido
de algodão impuro.
- É a minha
filha... - acrescentou a velha.
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