Recolhos da memória
Marco Albertim, no Vermelho
Na última noite de agonia, Alcebíades Lira,
tendo ao lado de sua cabeceira a filha mais velha, apontou para a porta do
quarto e disse:
- Mamãe e Geraldina estão ali. Vá falar com
elas.
A filha, inda que não vendo ninguém, olhou para a porta; olhou para
acudir o velho moribundo. Depois, passou a mão nos cabelos lisos, ainda pretos
da cor de carvão, que Alcebíades, sem explicação, soubera conservar. Tanto a
mãe quanto a irmã do visionário haviam morrido há anos. Depois, não se falou
mais no assunto; nem para carpir saudades nem para tornar presentes episódios
confinados nos fundos da memória. Há muito a próstata de Alcebíades vinha sendo
corroída pelo câncer.
Na primeira crise, cuidara-se sem sair de casa, com a ajuda da filha. O
diagnóstico, ele o soubera bem antes.
Deu-se no mês passado, o janeiro que o juízo de Alcebíades Lira cultuara
como um talismã. Em que pese a exaustão, a memória deu conta de cenários
sumidos, de episódios então ruidosos, hoje afundados na cripta dos anos.
Casara-se ainda moço, contra a vontade da mãe. A então namorada,
Jurandir Sarinho, namorara com todos os moços de seu quarteirão e dos
quarteirões vizinhos. Não fora de outro modo porque, bonita e sem defeito nas pernas,
inda que com a intuição bamba, julgara-se com o direito de escolher conforme os
traços do rosto, as posses do eleito. Não conseguira eleger nenhum deles,
porque as famílias a tinham como incapaz de crescer em algum ofício de pompa
remunerada. Conformou-se com Alcebíades Lira, filho de alfaiate, também ele
alfaiate, ajudante do pai nas encomendas de ternos e camisas avulsas. A soma de
tudo resultou na oposição mal-humorada da mãe.
Para agravar, mesmo depois de casado, Alcebíades continuou morando na casa
dos pais, dormindo no mesmo quarto de solteiro com outros dois irmãos. Jurandir
também não se separara dos pais, das irmãs, na casa ao lado, um beco estreito
nos limites das duas. A máquina de costura de Alcebíades, uma Singer movida a
pedaladas, mantivera-se num canto da sala de jantar da própria casa. Nunca se
queixou; fazia uso do sanitário da família, a venda onde bebia talagadas de
pinga, ficava por trás do muro dos fundos, o acesso facilitado pelo portão de
madeira, no oitão do quintal; por derradeiro, para emprenhar a mulher,
evadia-se da máquina durante o dia, sem fumos de deserção. Logrou emprenhar a
mulher por sete vezes.
Primeiro morreu o pai. Depois a mãe se mudou para outra casa, menor, em
companhia da filha e do filho mais moços, únicos que não se casaram. Alcebíades
juntou as roupas, foi morar com a mulher. Também lá, na casa de Jurandir, duas
de suas irmãs haviam morrido, dando vaga para Alcebíades no quarto.
O quarto agora está vazio de barulhos. Há sussurros de lembranças. As
paredes escuras socorrem, não dizem nada do presente, porque ali ninguém quer
viver o presente. Jurandir tem os cabelos brancos. Não fora de extravagâncias
no trato com o organismo. Depois do casamento, o dinheiro minguado do marido
não comportou gastos perdulários. Os dois, numa rotina miúda, cinzenta, sem que
se dessem conta da variação de cores na vida de outras famílias,
conservaram-se. Ele reteve o lume do negror dos cabelos. Ela, a maciez do
rosto, com escassos pés de galinha ao lado de cada olho; também reteve os
dentes originais. O marido perdera a metade para os cigarros, para as pingas de
misturada na barraca de dona Alice.
Ele quer fechar as pálpebras. A filha volta a alisar seus cabelos. Os
olhos se reabrem porque são acorridos por ruídos que só seus sentidos resgatam.
O cheiro de formol que se desprende do lençol, junta-se ao fel doce que ele
sentira quando mastigara uma folha da jurema no quintal. Ali sua mãe, num dos
janeiros que ele ainda vive, acendera fileiras de velas brancas em noites
escuras ou de luz; balbuciara rezas para evitar que o marido fosse preso,
acusado de comunista. O velho dera fim à literatura de matriz bolchevique. Não
foi preso. Ainda assim, os trompetes e trombones da banda de música em frente a
casa, seguiram para o enterro. Sob o sombreiro
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