Cheiros no cais
Marco Albertim, no Vermelho
O Cais de Santa Rita à
noite é tão deserto quanto povoado de calungas. Seus moradores não andam,
movem-se como defuntos saídos de cada túmulo, esgueirando-se entre paredes,
agachando-se no chão; para não terem a feição alumiada, de modo a tornar
visíveis as chagas. O relógio que cada um tem no juízo encolhido, dá conta das
vinte horas; é uma hora tocaiada, espreitada em leitos de papelão, de panos
ralos e polpudos dos miasmas do chão.
Feito um duende de feição indefinida, Renato põe-se
ao lado da mulher que tem o dobro de sua idade. Ele tem 21 anos, é magro de
pouca altura; o rosto, de tão amarelecido, não reflete nuanças da luz do poste,
inda que mova a cabeça miúda para os lados. Quando fala, ouve-se só o ruído
fanhoso que se desprende sob o lábio leporino. Ninguém entende, mas todos
intuem os intentos de seus grunhidos. A mulher, pressentindo-o, arrisca uma
censura, mostra uma regra de seu contrato social. Tem os cabelos amarrados
atrás, mas não evita que um tufo insubmisso faça sombra na testa em forma de
baú. "Sai com essa cola pra lá..." Não há ranço na voz, só a tenção
de absorver a noite com o cheiro próprio do cais. No cais não há o comércio de
colas para sapato, menos ainda o queimor ácido da graxa espessa. Renato,
ligeiro - a magreza dos braços ajuda -, esconde a garrafa pet na cintura,
oculta-a sob a camisa. Convence-se da própria habilidade, grunhe com os braços
soltos movendo-se, como a dizer que só tem o corpo meio transparente e a chita
desbotada na pele colada aos ossos.
A extremidade do cais, toda ela, é ocupada por
boxes fechados. O comércio de flores há muito sumira dali. Entre os boxes,
feito curvas entre túmulos em desordem, há resíduos de cheiro de margaridas
murchas; só o resíduos, as manchas de sujeira no chão de paralelepípedos são
como estrume, fedem como o chorume nos charcos.
Nos fundos de um dos boxes, Ludmila, o parelho e a
irmã - dela - instalaram a própria tenda; não a chamam por este nome, porque
quixó, este sim, dá-lhes o feliz sonho de que são os donos do lugar. A irmã de
Ludmila está sentada num banco, usa short e não se constrange de ter só o sutiã
em torno das mamas tenras. Ninguém a percebe no negrume do labirinto. Ela
folga-se modulando a vestimenta na polpa dos peitos. Depois, floca os cabelos
lisos com a ponta dos dedos como se estivesse num toucador. Mas tem à frente
duas paredes laterais de plásticos emoldurando o quixó, a coberta do mesmo
material, nenhuma porta para abrigar o monte de trapos sobre o leito de papelão
grosso. O leito é largo e num dos cantos, um bruguelo com menos de um ano
aninha-se como um filhote de garça. Os trapos cobrem-lhe a cintura, tem as
costas e as pernas nuas. Distingui-lo requer apuro na vista, porquanto, a três
metros dali, é apenas uma minúcia no meio dos panos. Ludmila, a mãe, também
dera-se conta do indício oracular da hora. Morena, com o corpo tabuado, magra
sem ser esquálida, tem no rosto uma beleza fugidia, que não resiste ao tranco
de sua rotina. Olha para o filho dormindo, reitera a crença de mãe sem
desbastes com o filho; mostra a boca sem os dois incisivos da frente.
O boxe fronteiriço tem degraus em forma de
arquibancada na frente. Ali, a irmandade malcheirosa senta-se para ruminar
sobre como fora o dia. Renato se desprendera da queixa da mulher, sem zumbidos
de amofinação. Senta-se, o cuspe desce ralo sob a rachadura do lábio. De seu
lado, em pé, Rodrigo tira de sob o casaco preto, feminino, que desce abaixo de
seus joelhos magros, a pet com uma risca de cola. A de Renato ainda guarda uma
risca - pouco menos da espessura do mindinho de cada um, nos fundos da garrafa
-, mas está morta, sem cheiro, porque há quarenta minutos ele a vinha sorvendo.
O casaco de Rodrigo é de vison, ganhara-o de uma pequeno-burguesa que se
convencera de sua inutilidade nas noites do Recife.
- Renato, o que você faz durante o dia? - arrisco.
- Eu escancho.
À resposta seguiu-se o gesto que expôs a mão
direita levantada, com a palma em forma de concha.
Ao lado, há o único boxe que tem os fundos com a
porta aberta. Dentro, um colchão de casal sem lençol nem cobertas. As paredes
da frente, do meio para cima, são vazadas por combogós de cimento. É alugado
por 50 reais por mês. A despesa é rateada por dois casais da mesma idade - 19
anos eles, 18 anos elas.
- Na hora de transar, um casal tem que sair para o
outro ficar à vontade?
- Não. Fica todo mundo junto.
Vinte
horas. Do bagageiro da Hilux, são tirados dois caldeirões de munguzá. Os crentes das Assembleia de Deus, instruem para os cantos e as preces, antes da refeição.
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