A história da eternidade
Marco Albertim, no Vermelho
No filme de Camilo
Cavalcanti, tudo está em combinação. O enredo convém ao cenário inóspito de
terra seca, povoado sombrio e acomodações toscas. As capturas do fotógrafo Beto
Martins, atentas, dão fulguração dramática em planos abertos que não deixam
escapar a subjetividade de cada personagem.
Mesmo com a câmara parada, a narrativa atesta sem
equívocos a similitude ou familiaridade entre o cinema e a literatura. Aqui
mora o nó górdio para quem se debruça sobre a obra. A história da eternidade
deve ser lido como um romance ou como um conto? Comecemos pelo sanfoneiro que
toca sentado ao lado de uma árvore solitária; toca uma música triste e tem o
assentimento de uma comitiva fúnebre, em marcha para o cemitério, para o
enterro de uma criança. Depois, vê-se o menino que abate uma rolinha com o
estilingue; a ave, ainda viva, agoniza em sua mão. O cenário se compõe de
ingredientes simples; juntos, dão conta da densidade do enredo. A compactação
de cada elemento, portanto, presta-se ao gênero conto e ao gênero romance.
Três histórias de amor com caracteres próprios.
Natanael, o vaqueiro, - Claudio Jaborandy - garante tragicidade à relação curta
e relativamente rica de reciprocidade entre sua filha, Alfonsina, - Débora Ingrid
- e o tio, Joãozinho - Irandhir Santos. O perfil deste último rompe com a
pasmaceira local. Ele não se rende à incivilidade, entrevê na sobrinha uma
chance do resgate de si próprio e dela, condenada à prostração da rotina. É um
artista sonhador e com saúde precária. A crise epiléptica, no meio do arruado,
ao tempo em que mostra a competência do ator, prenuncia seu fim trágico. Também
a rudeza de seu irmão, Natanael, anuncia um desfecho nada feliz para sua filha.
A performance do personagem tem dois ápices: quando se ajoelha aos pés da
filha, rendendo-se ao embrutecimento, depois de vê-la dançando com o tio; e
quando põe fim à vida de Joãozinho. Alfonsina trata o tio com afagos meio
incestuosos. O prazer é unilateral, dela, atenuado por ser uma sentenciada sem
culpa formal da vida que leva. A chuva irrompida à noite, simultânea à morte
violenta de Joãozinho, emoldura com traços de recuperação da morte lenta da
povoação.
Querência - Marcela Cartaxo - é a mulher solitária
que tem o filho enterrado. Não consegue se recuperar depois da perda. A corte
trêfega que o cego sanfoneiro faz a sua porta, não lhe dá esperanças,
convence-a de que o entorno de sua rotina está cheio agouros. Por fim, quando
abre a porta para o pretendente, a entrega se dá com a abundância da chuva.
Coincide com a sequência em que Alfonsina despe-se na frente do tio, depois de
arrastá-lo para casa em meio à segunda crise epilépica. As histórias se cruzam.
O filme é visto com a mesma fruição com que se lê o desfecho de uma narrativa
romanesca.
Na outra ponta, Das Dores - Zezita Matos -, tão só
quanto a antiguidade dos móveis da casa, tenta descobrir os segredos do neto
recém-chegado de São Paulo. A acolhida é afetuosa e mesclada por um amor
incestuoso, de mãe ou avó com porções de carinho em excesso. O neto faz uso da
sexualidade com revistas pornográficas. Está ali foragido. Numa noite de
delírio e confissão, a avó senta-se na cama dele. Não hesita em pôr fora do
sutiã a mama abundante, acomoda-a na boca sôfrega do neto. Também a chuva do lado
de fora atenua o amor solidário e incestuoso.
Em todo o filme não há minúcias secundárias. Tudo
se encaixa, mesmo nas sequências com algum humor; humor acanhado, como a
vegetação do cenário.
Do título do filme depreende-se algo de imutável,
que não é o caso em qualquer contexto, mesmo na seca braba das caatingas. Mas a
epígrafe serve para ilustrar o drama que vem a seguir.
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