Uma análise sobre a quebra de paradigmas na política
Entrevista a Daniel Leite, na
Folha de Pernambuco
A
relação do vice-prefeito Luciano Siqueira (PCdoB) com as causas sociais
percorre toda sua trajetória política. Sempre com um discurso voltado para as
camadas populares e as lutas históricas encampadas pelos movimentos de
esquerda, Luciano é o retrato da militância poética que tensiona as convenções
tradicionais. Ao longo de seu percurso, foi preso e torturado pelo regime
militar, se elegeu deputado estadual pelo PMDB, foi vice-prefeito do Recife
durante as duas gestões do PT e hoje ocupa mais uma vez o cargo, ao lado do
prefeito Geraldo Julio. Otimista convicto, Luciano acredita que o País vivencia
um novo momento de quebra de paradigmas. Em entrevista à Folha de Pernambuco,
faz uma ampla leitura da crise atual e sua influência nas eleições municipais
do ano que vem.
A
história brasileira é marcada por crises. Em sua análise, houve algum momento
político e econômico semelhante ao que estamos vivenciando? É verdade que o Brasil já
passou por muitas crises. De resto, penso que é comum a qualquer país. É
próprio da sociedade humana. Agora, nunca a história se repete da mesma
maneira. Existem alguns traços característicos do Brasil que estão presentes em
todas as crises. Para não ir muito distante, podemos lembrar da crise que
resultou no suicídio de Getúlio Vargas. . Ela se acentuou exatamente quando o
presidente acumulava políticas e ações de governo que contrariavam interesses
da elite dominante. Seja do ponto de vista social, no sentido de fazer valer as
leis trabalhistas que ele havia instituído, lá no Estado Novo, seja quando ele
deu passos mais avançados para dotar o Brasil de condições próprias de
desenvolvimento, em favor da soberania. Houve uma espécie de conluio natural
entre os setores mais conservadores e atrasados da sociedade brasileira, com o
capital externo. Se somaram e geraram um estado de confusão que levou ao
ambiente no qual Getúlio se suicidou. Naquele momento, outros dois elementos
estavam presentes. O primeiro foi uma forte pressão midiática e o segundo foi a
existência de uma oposição, no parlamento, completamente descomprometida com o
funcionamento do País.
Em
1964, o presidente João Goulart vivenciou a mesma situação. Com Jango, houve algo semelhante.
Há quem diga que um dos fatores desencadeadores do ambiente que levou ao golpe
militar e destituiu o presidente foi a Lei da Reforma Agrária, que pretendia
avançar na questão da distribuição de terras. Mas até do que o comício da
Central do Brasil ou a Revolta dos Marinheiros, que o presidente teria
acolhido.
A
queda de Collor também entra neste contexto? Com ele, foi diferente. A crise não foi provocada
por um conflito direto com a elite. Mas, no seu caso, o divórcio extremo entre
o Poder Executivo e Legislativo foi decisivo. Me recordo, na época, que o então
presidente da Câmara Federal, Ibsen Pinheiro, em uma conversa com o presidente
nacional do PCdoB, João Amazonas, disse que se sentiu impressionado em perceber
como o presidente da República não valorizava a relação com o Legislativo. E
havia, naquele momento, um conflito aberto entre a elite dominante e a maioria
da população, no sentido inverso do que tinha acontecido com Getúlio e Jango.
Collor aprofundava as medidas no sentido de viabilizar, no Brasil, o tal modelo
neoliberal, que compreende a concentração da renda e da riqueza e exclusão
social, inclusive com a desindustrialização e desnacionalização da economia.
Esse elemento provocou uma reação popular.
Há
cerca de dois anos, a crise atual era impensável... Nós vimos, há 12 anos, nos dois
governos Lula e no governo Dilma, a promoção de mudanças no País de largo
significado. O Brasil assumiu um patamar de respeito e reconhecimento na cena
global. A política externa do governo diversificou as relações diplomáticas e
comerciais prioritárias. No início do governo Lula, por exemplo, 42% das
exportações brasileiras eram dependentes do mercado norte-americano. Hoje,
passamos para 21%. Se na crise mundial que eclodiu em 2008, nós fôssemos tão dependentes
do comércio com os Estados Unidos como éramos há alguns anos, o Brasil teria
afundado. Os governos Lula e Dilma passaram a ter relações privilegiadas com a
China, com a Rússia, coma Índia e com outros mercados, como a própria
comunidade europeia. Ao lado disso, o País foi progressivamente assumindo uma
postura soberana e altiva, com os organismos internacionais. Isso foi uma
conquista muito importante. Outra conquista foi ter retirado, da linha de
extrema pobreza, pouco mais de 40 milhões de brasileiros. Uma massa popular
passou a consumir, a ter emprego, a poder ingressar em um curso superior ou
técnico e a disputar o mercado de trabalho.
Como
o cenário mudou tão rápido? Mesmo
sem romper com o perfil de concentração de renda do Brasil, a promoção dessa
ascensão social não poderia ter sido feita impunemente. Uma parcela
intermediária da população, que não elevou seu padrão de vida, se sentiu
ameaçada pela ascensão do povão. Mas os três governos do PT não avançaram quase
nada no terreno da superestrutura institucional. O Estado brasileiro continuou
com o mesmo perfil patrimonialista, elitista e ultra concentrador, condicionado
a servir a quem mais tem e não a quem mais precisa. Assim, a porca entortou o
rabo. No final do ano passado, a crise global, que está longe de terminar,
continuou se agravando. Agora, uma nova fase atinge duramente as economias
periféricas em ascensão, incluindo o Brasil e a própria China. Os
condicionantes externos, decorrentes da crise global se aprofundaram, sem
solução à vista. Além disso, nós ainda não fomos capazes de superar o modelo de
crescimento baseado no consumo interno. Teríamos que fazer uma transição para
um modelo mais avançado, que implicaria pesados investimentos em
infraestrutura, para alavancar a economia, em uma melhor ocupação do território
nacional, completando com uma integração do território, com ferrovias.
Isso
influenciou a crise política?
A crise política assumiu um caráter muito grave. A relação entre os três
poderes da República está muito desgastada. O Executivo encontra enorme
dificuldade para lidar com o Congresso Nacional. Quando se abriram as urnas, no
último pleito, verificou-se que o Congresso havia assumido um perfil muito mais
conservador. E isso evidencia, com muita clareza, o paradoxo que vivemos hoje.
O Congresso ultraconservador nega apoio às medidas de ajuste fiscal que jamais
a presidente Dilma ou o PT praticariam se não fossem necessárias para tirar o
País da crise e equilibrar as contas públicas. Neste contexto, ainda existe uma
oposição rebaixada, de caráter fisiológico e não programático. Apresentam
proposições incabíveis para um momento de crise e fazem demagogia com a
população. Então essa situação é muito delicada. A oposição, por seu turno,
abdica de fazer uma crítica de conteúdo, programática. Recentemente, quando o
senador Aécio Neves esteve aqui em Recife, na ocasião das homenagens ao
ex-governador Eduardo Campos, disse que a oposição não tinha compromisso com o
debate de soluções para a crise. E que isso era um assunto do governo. Mas está
errado.
Estas
transformações poderão afetar as eleições municipais do ano que vem? Aqui no Recife eu só tenho
segurança em uma coisa: Que Geraldo parte na frente, com condições plenas de se
reeleger. Claro que isso não quer dizer que a eleição seja fácil e que a
disputa não será acirrada. Na tradição do Recife, as disputas são
acirradíssimas. Mas a morte de Eduardo deixou uma grande lacuna, para o País,
pelo papel crescente que ele cumpria. Nós mesmos, do PCdoB, não votamos em
Eduardo para presidente, mas mantivemos uma relação excelente com ele, o tempo
todo, de amigos e aliados. Ele, inclusive, sempre compreendeu a posição do
partido. Era um homem da política. Muito jovem, mas muito experiente. E sabia
que o PCdoB tem um projeto nacional, que está muito próximo do PT, desde a
primeira tentativa de Lula de se eleger. Agora, o PSB, que ainda é hegemônico
em Pernambuco, vive um outro momento, sem Eduardo. Novos líderes vão surgindo,
como Paulo Câmara, que vem se revelando um bom governante, capaz de exercer
liderança e ocupar esse espaço deixado. Convivo com Geraldo Julio, que a cada
dia vem se afirmando como bom gestor e um político hábil. Então no Recife,
temos uma coalisão partidária muito ampla. Talvez mais ampla do que no governo
do Estado. Englobamos partidos como o Democratas, o PSDB, o PMDB e uma série de
outras siglas. Isso demonstra que Geraldo não abre mão do programa de governo.
Nós mesmos do PCdoB temos quadros que dialogam com todas as forças políticas,
respeitando as diferenças. Isso é tarefa de todos nós, de ajudarmos a superar
as dificuldades momentâneas.
Como
está a relação entre PCdoB e PSB?
Costumo dizer que a política não é uma mágica. Como na família, às vezes surgem
contradições. É natural que muitos companheiros sintam desejo e até o dever de
cumprir um papel mais relevante neste período de transição. Isso pode sim gerar
tensões Mas penso sempre que são superáveis. Todos os partidos almejam disputar
prefeituras. Em Olinda, por exemplo, é natural que partido que estão juntos possam
disputar entre si. Cabe a todo nos ter maturidade e serenidade para enfrentar eventuais
divergências e conflitos com espírito democrático. Não está nada resolvido. É
necessária muita paciência par administrar os conflitos. Já no Recife, não
temos bola de cristal. Mas salvo se existi algum fato novo extremamente
inesperado e de dimensão insuperável, que não estaremos juntos. A população do
Recife reconhece nosso desempenho. Geraldo tem sido um excelente parceiro do
PCdoB. Vamos encerrar um primeiro mandato de forma excelente e ele entra na
segunda eleição com o apoio do PCdoB.
Em
Olinda, o irmão de Eduardo Campos, Antônio Campos já teria o aval do PSB... Nós estamos governando Olinda
há quatro mandatos. Lá, Antônio Campos se apresenta como pré-candidato.
Encaramos com naturalidade a manifestação de interesse de partidos que governam
conosco de disputarem eleições. Mas também temos o direito de disputar a
eleição do Recife. Não desejamos, porque achamos que é bom para a cidade
reelegermos Geraldo. Mas se tivéssemos motivos, disputaríamos aqui
tranquilamente também. E iríamos contar com a com preensão dos aliados no
Recife. Agora, em Olinda, qual o cenário? Qualquer especulação não passa de
especulação. Na vida, as pessoas dizem que quem come apressado come cru. E na
política isso também tem o seu valor É preciso paciência e serenidade, para
agir no momento adequado, respeitando a motivações de cada um. Luciana disputa
em Olinda Nunca se recusou. Mas acho que as conversas só começam mesmo no
começo do ano que vem.
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Caro amigo Luciano, você sempre revelando essa sua habilidade incrível para o diálogo, amplo e efetivo. Excelente entrevista, uma aula magna de política.
ResponderExcluirParabéns, camarada querido, e obrigado.