25 fevereiro 2016

Mídia cúmplice

Miriam Dutra abre o quarto de despejo dos anos 90

A cumplicidade entre o dinheiro, a soberba e a mídia contém uma atualidade demolidora. A mídia foge desse garimpo porque é parte indissociável da lama.
Saul Leblon, na Carta Maior
Por que só agora que o PT está a um degrau do cadafalso?
A suspeição que o jornalismo tucano consegue balbuciar em meio às alvejantes declarações de Mirian Dutra sobre a parceria público privada para silenciá-la no governo FHC, carrega um efeito bumerangue demolidor.
Pode ser respondida com uma arguição.
‘Quem publicaria antes, a história que furou um cerco de 23 anos de obsequiosa cumplicidade da mídia brasileira com esses acontecimentos, para somente agora vir a público num relato demolidoramente crível? (‘Só eu tenho condições de levar este país’, dizia o príncipe à jovem plebeia, há um mês da conquista).
Mirian Dutra abriu o quartinho de despejo dos anos 90. E mostra o que tem lá dentro.
Sua fala carrega a credibilidade de quem –convencida ou conivente-- fez parte do acervo.
O que avulta nessa visitação retrospectiva  são os bastidores de um projeto de poder e de interesses que se blindaram para mudar a lógica do desenvolvimento brasileiro.
‘Coveiros do ciclo Vargas’ não era assim que se jactavam aos mercados?  Terceirizar o timão brasileiro ao mercado internacional requeria um método para vencer a travessia politicamente espinhosa.
O método, baseado num pacto granítico entre a mídia, os interesses afluentes e o vale tudo ético, é o que guarda o quartinho escuro escancarado agora.
Mirian, num dado momento, tornou-se um cisco no olho guloso do visionário do neo- renascimento bancado pelo capital financeiro global, e que se via como o Micheangelo Buonarroti  da Capela Cistina brasileira.
Foi preciso expurga-la. O que se fez com a mesma determinação ética e a coesão grupal dos interesses que se fundiram na travessia preconizada para o país.
Surpreende que a mídia isenta tenha fugido dessa personagem por 23 longos anos, dispensando-lhe  uma mordaça de silencio e dissimulação conivente?
Que veículo ou editor da chamada grande mídia teria bancado antes, e com o destaque merecido, a nova e demolidora entrevista concedida pela ex de Fernando Henrique Cardoso, neste final de semana, a um veículo alternativo?
Será necessário lembrar que na anterior, feita pela Folha de São Paulo, perguntas e nominações essenciais  envolvendo a mídia foram evitadas?
E que depois disso o veículo dos Frias –cumprida a formalidade das aparências— suprimiu o assunto da primeira página mostrando estranha inapetência investigativa diante de pautas que gritam?
Quais?
Por exemplo,  a história do jornalista lobista, já falecido, Fernando Lemos. Personagem expressivamente próximo de FHC, cunhado de Mirian Dutra, foi ele que mediou a participação da Brasif na operação para tirar Mirian do país e assim salvaguardar o tucano de constrangimentos na reeleição.
Lemos fez dinheiro no governo FHC com serviços de consultoria. Muito dinheiro. Participou do círculo estrito do poder que decidia inclusive as campanhas políticas de FH. Sua viúva,  Margrit Schmidt, segundo a própria irmã contou ao Diário do Centro do Mundo,  possui  ‘apartamentos, um terreno em Trancoso que vale  ‘um milhão’ e conta no Canadá’.
Mas ainda recebe recursos públicos como funcionária lotada no gabinete de José Serra, onde nunca comparece. Resquícios da ‘modernização’ das capitanias hereditárias pelo avanço neoliberal.
Eterno aspirante à presidência da República, Serra se declara  velho amigo e parceiro de ideias da funcionária-fantasma, que  brada contra a corrupção e a  ‘corja’  do PT’  no  facebook. Serra também é amigo muito próximo do pecuarista Jonas Barcellos, que bancou Mirian e ganhou rios de dinheiro
com o monopólio dos freeshops no governo do PSDB.
Guarda esse tipo de álbum de recordações o quartinho de despejo dos anos 90 agora entreaberto, mas que a mídia quer lacrar e implodir.
A indiferença ética, o tráfico de influência e a lubrificação do dinheiro público a serviço do interesse particular condensados no episódio Mirian Dutra, não formam, como se vê, um ponto fora da curva  no modo tucano de governar as relações entre Estado e mercado; entre capitalismo e democracia, enfim, com papel subalterno ao segundo elemento da equação.
Se pouco disso transparece ainda no debate político, deve-se ao protagonista ubíquo dessa trama.  
A mídia figura como o grande Rasputin a coordenar os personagens desse ambiente farsesco em que as aparências não apenas são avalizadas, mas diretamente modeladas, conduzidas mesmo pelo poder midiático até a asfixiante rendição à narrativa pronta nas redações.
Ou Mirian Dutra não foi ‘induzida’ a dizer à Veja a frase para a qual Veja já tinha espaço, lugar e título, antes que a personagem soubesse que sua boca iria emiti-la?
Esse o paradigma da isenção que ordenava e ainda rege o sistema do monopólio emissor consolidado sob as asas do ciclo do PSDB na presidência do Brasil.
O maior conglomerado de comunicação do país e a principal revista semanal do mercado brasileiro –as Organizações Globo e a semanal Veja--   não apenas informaram um script conveniente à reeleição de FH.
Elas ajudaram ativamente a produzi-lo --a exemplo do que fez a Folha nos anos 70, quando cedeu carros à repressão.  
O tour de force para despachar Mirian é só um exemplo em ponto pequeno do empenho que movimentou grandes massas de interesses para o ciclo privatizante que viria então.
Nenhuma delação extraída pelo método da chantagem coercitiva, tão bem manuseado pela República do Paraná, carrega a delicadeza convincente desse desabafo –ao que tudo indica apenas iniciado—de uma mulher que talvez não tenha mais nada a perder.
Recém demitida pela Globo, Mirian provavelmente perdeu também a mesada que recebia de FHC e viu a relação com o filho ser trincada pela intempestiva intervenção do tucano que –em troca de um DNA polêmico--  supriu Tomás com mesada própria, comprou-lhe um apartamento, pagou-lhe os estudos em caras universidades norte-americanas.
A mãe do filho que FHC lhe dizia que não poderia ter em seu nome decidiu agora reagir com o que tem de mais letal: a memória.
Mirian Dutra apenas começou a falar. Parece que tem muito a dizer: ’Serra eu conheço bem...’, cutucou de relance na última entrevista.
Desde o início desse episódio Carta Maior tem insistido em que as relações entre um homem e uma mulher formam um assunto privado.
Mas a participação da mídia, de concessionárias públicas, bancos estatais e paraísos fiscais no caso fazem dele um tema público.
Foi a cobiça  e a ganância econômica  que politizaram o encontro entre o sociólogo cinquentão e a jornalista jovem;  não o inverso.
A descrição impressionantemente crível, repita-se,  do método tucano que Mirian Dutra relata em detalhes dá materialidade a tudo o que o PSDB ora denuncia e atribui aos adversários, sobretudo ao PT.
É um revés de dimensões esfarelantes.
As revelações em conta gotas trazem um olhar de dentro do fastígio das elites no poder nos anos 90.
Um olhar de alguém que circulou nas vísceras do condomínio cristalizado na farra da privatização, quando se desferiu um dos mais virulentos ataques à luta pelo direito a um  desenvolvimento justo e soberano.
Conhece-se o custo contábil do desmanche patrimonial que fragilizou a capacidade articuladora do
Estado e definhou a governabilidade democrática,  subordinada  desde então à supremacia dos capitais desregulados.
Abre-se  a possibilidade agora de se iluminar o interior da  engrenagem  rapinosa.
Não para produzir uma arqueologia do revide.
Não para se nivelar ao vale tudo dos que buscam aniquilar  as forças e lideranças empenhadas na reversão do desmonte para construir uma democracia social no coração da América Latina.
O que está em jogo não é o passado; é a urgência de se devolver esperança ao futuro.
O passo seguinte do desenvolvimento brasileiro enfrenta uma encruzilhada histórica. Um ciclo de crescimento se esgotou; outro precisa ser repactuado em novas bases.
Muitos dos personagens e interesses econômicos que atuaram no episódio Mirian Dutra –  FHC, Organizações Globo, Veja, Jorge Bornhausen, José Serra  etc—   compõem a linha de frente da ofensiva conservadora atual, determinada a retomar o poder, custe o que custar, para concluir o serviço  dos anos 90.
O mapeamento dessas peças do xadrez ganha luminosidade desconcertante nas revelações  de Mirian Dutra.
Elas permitem recompor a seta do tempo que une a lógica e a ética dos anos 90 ao projeto intrínseco ao golpismo em 2016 .
Detalhar essa cruzada é uma das tarefas  jornalísticas mais importantes do momento.
A ela se debruça Carta Maior na matéria  ‘Lei para Todos’, desta edição.
Estão radiografados ali  elos explícitos  e dissimulados.
É impressionante como os elementos se interligam e convergem, muitas vezes para um mesmo espaço: os paraísos fiscais:    FHC, Brasif, negócios e propriedades dos Marinhos, BNDES, lobistas, empresas de fachada, mansões, helicópteros e personagens referenciais da extrema direita brasileira, como Jorge Bornhausen.
O colunismo da indignação seletiva não fará esse garimpo do qual é a parte mais comprometida cascalho.
O ressentimento autoexplicativo de Eliane Cantanhede (‘ que sempre soube dessa história’, fuzilou Mirian Dutra) mostra como o jornalismo ‘isento’ sentiu o golpe de uma peça lateral do acervo, que mobilizou a parte graúda do tabuleiro para ser deslocada há 23 anos, e agora volta ao jogo revirando  a mesa.
Ao falar é como se Miriam gritasse: 'O Rei está nu'.
Não só ele, porém; toda a corte ao seu redor e, sobretudo, o seu projeto de volta ao poder.
Daí o alvoroço dos mensageiros do trono.
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