"Crime", "castigo" e "poupança"
Elias Jabbour,
no portal da Fundação Maurício Grabois
Às vezes penso
que a era inaugurada pelo Plano Real, e o “tripé” de 1999, pode ter inaugurado
uma nova forma de ajuste cíclico de curto prazo. O poder exercido pelos
chamados “agentes do mercado”, os manipuladores de oferta de bens alimentícios
(oligopsônios/monopsônios: sempre remarcando preços para cima, apesar da queda
da demanda), o empresariado com um pé na finança e a grande mídia acrescentou à
lógica dos ciclos breves de crescimento e recessão outra variável: a dos
círculos, geralmente viciosos. E geralmente fiscais. É pelo “fiscal” que se
garante o “prêmio de risco” à banca. O fundo “teórico”, a “economia de custos”.
A pornografia: relacionar o problema da demanda em queda com a “farra de
gastos” pretérita do governo. A solução, reforma – cíclica – da previdência e
desindexação do salário mínimo à inflação. A estratégia: mudanças
constitucionais capazes de reduzir o papel do Estado ao mínimo possível.
A noção de
custos de produção é algo tão enraizado entre nós quanto a noção da poupança
como pressuposto ao investimento. Explico, é senso comum a noção para quem a
volta do crescimento e investimento só são possíveis com cortes de direitos
sociais, por exemplo; que o fato de se gastar acima da receita compromete a
capacidade do Estado em ditar o ritmo do processo de acumulação. Vivemos numa
plena “dominância fiscal”. São dois elos (redução de custos e poupança predecessora
do investimento) conceituais explicativos à atual dominância fiscal no Brasil e
no mundo. Expressão de poder exercido pela grande finança que capitaneia a
atual quadra de acumulação capitalista, também no Brasil e no mundo. Por essa
lógica, o Princípio da Demanda Efetiva (interferência do Estado sobre o ciclo
econômico, quebrando “bloqueios de mercado”, indicando ao setor privado ocioso
novos campos de acumulação) só é possível de execução em países com alto grau
de poupança e capacidade produtiva instalada. A ênfase no fator “poupança”
reduz todos os problemas a uma simples aritmética monetária. O Brasil não
cresce por falta de “poupança”. A China cresce por ter “poupança demais”.
O outro lado
da discussão proposta pela economia burguesa não vulgar, surgida no pós-crise
de 1929 desloca a ênfase do monetário ao financeiro (o que não guardava grandes
novidades à ciência econômica oriental, a saber: o marxismo). A diferença, a
nós, é que o investimento é produto de induções institucionais/financeiras,
incluindo emissão monetária prévia – daí o papel de grandes bancos de
desenvolvimento. À visão deles é muito interessante perceber que um país como o
Brasil não cresce por falta de um sólido sistema financeiro operando com taxas
de juros “internacionais”. O que não falta à China são bancos de
desenvolvimento operando num quadro de socialização/coordenação do investimento
com grandes conglomerados empresariais fincando pé em imensos investimentos em
infraestruturas (dentro e fora do país) e empresas privadas ancilares,
quebrando bloqueios de mercado nos setores de serviços e construção. Numa
economia com este grau de operacionalidade os “custos” estão submetidos a duas
ordens de contradições. O “custo estratégia”, a aposta no médio e longo prazos
(incluindo o custo fiscal anexo aos ciclos de substituições de dívidas
provinciais por dívidas absorvidas pelo governo central e vice-versa). E o
“custo transição”, percebida atualmente na decisão central de investir menos e
consumir mais. Políticas econômica e monetária em “estado puro”.
Voltando à
Terra, à nossa terra. Qual o fundo dos debates e “ideias” propostas? De um
lado, o justo reclame à queda das taxas de juros. Algo que mistura visão
“estática” e “questão fiscal”. Visão estática por acreditar que a queda da taxa
de juros tem relação direta com a retomada do crescimento. Já falei sobre isso.
E fiscal, por ir direto ao ponto da crise fiscal agravada pela alta taxa de
juros e a impossibilidade de manutenção de programas sociais sérios por conta
desta sangria. Correto, mas existe uma questão de ordem pública. Numa crise nem
todos perdem, senhor Trabuco. Muito menos o Bradesco. A alta taxa de juros e a
péssima relação entre investimentos x PIB tem relação direta com o agravamento
da barbárie social, os surtos de doenças tropicais do século XIX em pleno
século XXI. E a metrópole se convertendo num Moloch insaciável (um “monstro
urbano”) ao qual tudo se sacrifica, tornando-se impotente para reprimir,
legalmente, o crime e recorre ao crime da repressão policial/terrorista – como
ocorre hoje nas grandes cidades brasileiras onde pobres e negros estão rendidos
a uma polícia assassina, numa queima livre de forças produtivas.
Sabendo-se de
antemão da relação que domina nosso empobrecido debate entre redução dos custos
de produção/retomada do crescimento, num país com desequilíbrios estruturais
como o nosso, qual o preço desta relação? Dostoievski explica. Dois “crimes”
ocorreram e merecem “castigo”. Um governo que gasta mais do que arrecada e um
povo que consome de forma exagerada. Ambos fatores geradores de “inflação de
demanda”. Governadores e prefeitos devem ser presos por não cumprirem a chamada
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Esse é o clima. Malthus volta a viver
numa realidade onde a aposentadoria é outro crime por atentar contra os limites
orçamentários. E os trabalhadores não podem ser benificiários de indexações,
privilégio restrito ao capital. Formação de poupança para voltar a crescer não
pode combinar com nada disso, em tese. O que está em questão é o passo seguinte
ao Plano Real e o tripé. A transformação efetiva da estratégia da década de
1990 em política de Estado de longo prazo passa pela mudança da Constituição
com desvinculação de gastos sociais, teto para dívida pública e necessidade de
permissão ao Estado para intervir na economia. Estamos em volta de uma
verdadeira “batalha pela democracia”!
E no final das
contas, o Brasil voltará a crescer? Devemos saber separar as coisas. Pode haver
num médio prazo alguma utilização de capacidade produtiva, ensejando
crescimento – não aumento da taxa de investimentos. O pacote de crédito lançado
pelo governo na reunião do Conselhão dá conta deste propósito. A questão que se
levanta é de expectativas. Produção e consumo estão combinando neste aspecto. O
problema político é a variável-chave abrindo campo às chantagens abertas por
redução de custos de produção, principalmente os “gastos sociais”. Isso tudo no
imediato. Aumentar a taxa de investimentos neste quadro institucional (década
de 1990) e diante da atual conjuntura? Não acredito. A grande tática é tentar
ao máximo cercar as pautas dos “custos de produção” e da “formação de poupança
ao crescimento”. Aumentar a taxa de investimentos só com uma outra ordem
institucional capaz de superar as criadas no biênio 1994-1999. Assunto de longo
prazo, com outra correlação de forças. O Brasil precisa de novos marcos
institucionais que consagre o investimento em política de Estado, não o
contrário. É este o grande debate na qual deverão se concentrar as melhores – e
mais corajosas – mentes de nossa nação.
Leia mais sobre temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
Nenhum comentário:
Postar um comentário