Não é um 'meio político' derrubar uma presidenta com
54 milhões de votos, para colocar no Governo a pior 'troupe' de oportunistas
Tarso Genro
As afirmações do decano do STF, Ministro Celso de
Mello, desqualificando a opinião de dezenas de juristas importantes como
ele (e também se opondo a uma manifestação da Presidenta, que
classificou como golpe o "impeachment" em andamento) tem tanta
legitimidade, perante a História e perante o Direito, como o curto
"mandato" do ex-Presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli,
logo depois da deposição do Presidente João Goulart. A comparação não é
irônica: a força dos fatos às vezes legitima, rapidamente, o direito produzido
de maneira "torta" -como o Supremo legitimou todos os atos
institucionais depois da derrubada do governo João Goulart- mas, nem por
isso, o Golpe de 64 deixou de ser Golpe, independentemente dos juízos de valor,
positivos ou negativos para o país, que os historiadores tenham sobre ele.
Qual a armadilha "dogmática", que está presente
no discurso do ministro Celso? A falta de especificidade da sua fala (a que
tipo golpe ou "impeachment" ele se reporta), de um lado e, de outro,
o uso de uma abstração, que tenta blindar o discurso, como discurso neutro
(meramente "jurídico"), sem qualquer conotação histórica ou política,
aparentando que quem o emite não tem posição política sobre o processo de
derrubada da Presidenta. Como se todos os golpes fossem iguais e todos os
"impeachments" fossem os mesmos. Por isso, a sua fala é um óbvio, que
sempre quer dizer mais do que óbvio: para ele, este "impeachment" não
é golpe!"
Querem testar? Vamos supor que o Ministro Celso de
Mello, como decano do STF -com o seu brilho costumeiro- dissesse que
"um 'impeachment', em tese não é golpe, assim como nem todo o golpe, é
golpe militar". Se dissesse desta forma o Min. Celso de Mello
poderia ser atacado como um assistente jurídico do
"impeachment"? Ou como um Ministro suspeito, que deverá julgar
uma das questões jurídico-políticas, mais importantes da nossa história
constitucional? Certamente poderia, mas se lhe atacassem por essa
hipotética fala, quem o fizesse certamente seria um crítico sectário ou, no
mínimo, um imprudente. Mas não foi o caso. Com sua intervenção o Ministro
passou a compor o contencioso político e a sua frase óbvia, representa muito
mais do que óbvio: "podem tocar o "impeachment" que nós os
respaldamos!"
Os juristas dogmáticos, cujo raciocínio só vai da
"norma para norma" -mesmo que a aplicação de um dispositivo possa
atingir os fundamentos da constituição- não raro enredam-se na defesa
da exceção ("declarada"), como num golpe militar, ou "não
declarada" (como num falso processo de "impeachment"). Mas o
objetivo é o mesmo: subtrair a soberania popular. Na primeira hipótese,
as autoridades supremas do Judiciário, por exemplo, validam atos institucionais
e leis raciais, porque a força os obriga; na segunda hipótese, aceitam
instrumentos legais de correção da soberania (face a "cometimento de
crimes") falsificando sua interpretação: as famosas pedaladas, que, para
outros governos, não eram crimes de responsabilidade, passam a ser para
"este". Aceitam dar aparência de legalidade à aplicação de um
instrumento correto, para uma causa política espúria.
O significado da categoria "golpe de Estado" não
é o mesmo através dos tempos. Os sujeitos do "golpe" variaram e os
motivos, evidentemente, também. Mas o que permaneceu invariável foi que o golpe
é sempre realizado por "órgãos do Estado", que ele constrói um novo
direito ou reconstrói o direito vigente e, quando existe uma soberania mínima
do Poder Judiciário, esta é flexionada para legitimá-lo. Ou esta soberania é
destruída por atos de força, para dar lugar a um poder supremo novo, que tanto
pode ser um mero cúmplice da força do novo grupo dirigente ou pode ser seu
aliado incondicional.
Embora na origem dos estudos sobre o golpe de Estado,
estivesse lá a visão de que ele sempre reforçaria o poder do próprio soberano,
no constitucionalismo moderno o termo vai ficando cada vez mais preciso. Passa
a ser vinculado a mudanças violentas, para atacar de forma deliberada as formas
constitucionais, "por um Governo, por uma assembleia ou um grupo de
pessoas que detém a autoridade" (Larousse). Foi golpe de Estado, por
exemplo, o de Luis Bonaparte (1851), quando este liquidou a Segunda República
-da qual ele era Presidente- proclamando-se o novo Imperador da França. Foram
golpes de Estado, de "esquerda", aqui na América latina na década de
70, os comandados pelo General Alvarado, no Peru. e pelo general Juan José
Torres, na Bolívia. Eram, também, atalhos para buscar a democracia social, que
não deram certo. Mas eram golpes.
Na segunda metade do Século passado, na América Latina e
na África, sucederam-se golpes de Estado, de caráter tipicamente militar, tendo
à frente as Forças Armadas e as Forças da Polícia, estamentos mais
organizados dos jovens Estados Nacionais, ou daqueles Estados com experiências
constitucionais mais débeis. Eram as forças da burocracia estatal mais
organizadas, que garantiam inclusive a existência de governos nacionais, com ou
sem legitimidade política. O que parece, neste momento, é que os golpes de
Estado na América Latina passam por um processo de "suavização" institucional,
sem ação militar específica, destinada a apropriar-se do poder, mas como o
mesmo objetivo e por outros atores: a busca do poder, de forma paralela às
normas constitucionais.
No Brasil, há mais um detalhe, que faz a situação do
nosso golpismo mais atípico: enquanto no Paraguai, as forças que golpearam o
Presidente Lugo eram forças politicamente oposicionistas e no Peru, de
Fujimori, ocorreu um golpe processual -sem mudanças de Governo-
hiper-reforçando o poder pessoal dele e do seu grupo político, aqui no
Brasil o golpe se processa por deslocamento de forças governistas, São as mais
comprometidas nos processos de corrupção, que constituem uma nova hegemonia no
campo oposicionista, com um impulso significativo por uma parte do Poder
Judiciário, que tem permitido, até agora, que o processo seja conduzido
por um Presidente de Legislativo, processado por corrupção.
Temos, portanto, Min. Celso de Mello -se é que Vossa
Excelência não sabe- os golpes de Estado que surgiram na juventude do
Estado Moderno (ainda não plenamente democrático); os golpes de Estado de
caráter militar (mais recentes); e os golpes pós-modernos, que obrigaram
um dos chefes das Forças Armadas fazer a observação mais jurídica e
constitucional -promovida até agora- pelos poderes reais do país. Disse
o General Villas-Boas, algo como: "não existe intervenção militar na
política, que seja constitucional; nos pautamos pela legalidade, pela
legitimidade, pela estabilidade do país: a crise é ética, política e econômica,
e deve ser resolvida pelos políticos, por meios políticos". Não é um
"meio político", derrubar uma Presidenta com 54 milhões de votos,
para colocar no Governo a pior "troupe" de oportunistas, que até
ontem estavam usufruindo dos piores equívocos, do próprio Governo que querem depor.
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