04 abril 2016

Fatos de uma história recente

Houve um tempo em que a fúria fascista atingiu a Faculdade de Medicina do Recife
(Primeira onda da repressão)
Por Djalma Agripino, do NUSP-UFPE [foto]

Duas epígrafes, extraídas do Antigo Testamento, encabeçam o livro "Brasil: nunca mais - um relato para a história", resultado resumido do projeto também assim denominado. Para expor a tortura praticada pela Ditadura Militar, a ação mnemônica reuniu líderes de três tradições religiosas: o rabino Henry Sobel, o então arcebispo de São Paulo dom Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright. 
"Escreve isto para memória num livro" (Êxodo 17, 14)
"Lembrem-se do que aconteceu no passado: Naqueles dias..." (Hebreus, 10,32-35)
Tive o privilégio de ouvir, ao vivo, depoimentos e histórias de vida sobre o Golpe de 64 na casa de minha querida amiga e professora Gilda Kelner. Durante quase 20 anos, convivi com Pelópidas Silveira, prefeito do Recife afastado pelos militares em 1964. Tudo o que pude registrar ficou registrado. E os depoimentos dos professores Miriam e Salomão Kelner sobre o tempo em que a fúria fascista atingiu a Faculdade de Medicina do Recife. Como esquecê-los? Seguindo a norma bíblica, escreverei aqui sobre o que ouvi e torço para que não caia nas águas do rio Lethe, o rio do esquecimento dos gregos. 
Por enquanto, só falarei da primeira onda de repressão sobre a Faculdade de Medicina. O Golpe de 64 prendeu, perseguiu e humilhou os professores desta instituição (a tortura e a perseguição a estudantes vieram depois). O crime alegado na ocasião para justificar as arbitrariedades: assinatura de um manifesto em apoio ao Governador Miguel Arraes!!!! 
Professores Arnaldo Marques e Eleazar Machado, respectivamente, catedrático e assistente de Propedêutica Médica - PRESOS!!
Professora Naíde Teodósio, assistente da cátedra de Fisiologia - PRESA!
Professor Salomão Kelner, assistente da Cátedra de Cirurgia, professora Miriam Kelner, assistente da Cátedra de Obstetrícia, e sua filha Gilda Kelner, aluna do curso médico - PRESOS!
Professor Paulo Loureiro, assistente da Cátedra de Clínica Médica - PRESO!
Outros sofreram humilhações e constrangimentos. Entre eles, estava o professor Guilherme Abath, pai de meu amigo e colega de turma Carlos Abath, além dos professores Amaury Coutinho, catedrático de Clínica Médica, e Hélio Mendonça, assistente de Histologia. 
Se tivessem assinado o referido manifesto, eram "convidados" a botar nota no jornal afirmando não ser filado ao Partido Comunista!!!! 
Sei que houve outros, mas infelizmente não registrarei. 
Católicos, judeus, ateus, comunistas, democratas, liberais.... não escaparam dos cães raivosos. 
Para finalizar, relembro duas atitudes que me foram descritas envolvendo os professores da Faculdade de Medicina. É em momentos cruciais que se pode avaliar a dignidade da pessoa humana. É muito confortável, em tempos democráticos, defender a democracia e pedir intervenção militar. Gostaria de ver a defesa da primeira opção nos tempos em que o pau cantava. 
Nesses tempos bárbaros, um famoso professor desta casa, pasmem, afixava m, nas paredes do hospital Pedro II, recortes de jornais com nomes dos que haviam assinado o manifesto em apoio a Arraes!! O gesto infame era ração para os cães furiosos. 
Mas houve um outro professor, distante da política, que condenou eticamente aquela ação e agiu: ARRANCOU DAS PAREDES os recortes de jornais com o nome das vítimas. 
Gostaria de escrever aqui em caixa alta o nome deste ÚLTIMO (eu sei o nome do primeiro) professor que tomou tal atitude. Infelizmente esqueci, tomei água do rio Lethe! Quem me informou isto foi a professora Myrian Kelner. Quem souber, relembre aqui. 

Há momentos na vida em que é importante saber como se comportaram as pessoas naquela ocasião (relembrar célebre fala de Arraes durante os "convites" para renunciar ao mandato em 64).
Há atitudes corajosas e sublimes, como as de Arraes, ao resistir ao Golpe, as dos professores da Faculdade de Medicina que assinaram o manifesto o apoiando e, sobretudo, ainda, aquela do professor anônimo (por enquanto) que protegeu seus colegas das garras fascistas. 
Quando, ao final da vida, formos julgados no amor, como lembra o místico espanhol São João da Cruz, essas atitudes JAMAIS SERÃO ESQUECIDAS. O resto não caberá no lixo da história.

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