Eu
tinha 8 anos quando crianças apontaram para mim e gritaram “demônio, filha de
comunista”. Achei que isso nunca mais aconteceria. Estava enganada.
Rosana Pinheiro-Machado, na Carta Capital
Eu fui
crescendo, a democratização foi se consolidando e as acusações pararam de
acontecer. Tornei-me adolescente com o fim da União Soviética e a queda do Muro
de Berlim. Todo mundo queria fazer fila para comer no McDonalds
recém-inaugurado.
Conforme os
ares da ditadura iam ficando para trás, meu pai comunista se transformava mais
em folclore do que uma ameaça. Eu me tornei adulta acreditando que eu podia ser
bizarra de esquerda, mas ainda sim eu desfrutaria de uma liberdade que meus
pais e meus tios nunca desfrutaram.
Eu achava
que nunca seria chamada de demônio comunista e que isso se devia ao fato de o
Brasil ter alcançado solidez democrática e liberdade de expressão.
Mas eu
estava engana. A caça às bruxas voltou. Na verdade, ela nunca se foi.
O ódio às manifestações
de esquerda só cessaram enquanto o American
Way of Life reinava
soberano sem qualquer possibilidade de ameaça. Ser de esquerda era ser
ultrapassado, “feio e sujo” – como diziam – ao contrário de todo aquele apelo
do consumo capitalista.
Contudo,
desde os movimentos de Occupy, o império volta a ser questionado no mundo todo e isso é
feito por meio de novas linguagens, roupagens e significados.
No Brasil, Junho de 2013 mostrou a emergência de nossas subjetividades políticas,
difíceis de enquadrar em esquemas binários. As estruturas de classes foram
minimamente desafiadas por meio de políticas de inclusão sociais. Estas
políticas – que estão longe de ser socialistas – foram toleradas pelas elites
brasileiras enquanto a maré do crescimento econômico favorecia a todos.
Mas bastou
o colapso econômico entrar em cena e a população brasileira mostrar sinais de
mobilização política, que a ameaça comunista foi reinventada e resgatada do
fundo dos esgotos mais imundos. Abriram-se os bueiros e os ratos saíram para a
rua.
Tempos estranhos
- Por respeito às pessoas que foram torturadas e mortas na ditadura militar, eu tenho muita cautela em empregar levianamente a palavra
golpe e reproduzir algo que eu acho uma atitude um tanto masoquista de uma
parcela da esquerda: o seu desejo mais íntimo – e um tanto estético, é verdade
– de ter militado nos anos 1960 e 1970. Mas é preciso pontuar que a perseguição
ideológica voltou com tudo. O momento é crítico e os efeitos disso são
catastróficos.
Eu contei
12 amigos e conhecidos meus que foram agredidos física e verbalmente por saírem
nas ruas de vermelho recentemente. Um bebê teve atendimento médico recusadoporque a mãe era do PT. Duas associações médicas disseram
que a recusa de atendimento era legítima.
Nos últimos
dias, eu deparei-me com dois casos alarmantes na educação. O doutorando e
professor Paulo Ramos foi demitido sumariamente, depois de ter sido interpelado
por seuposicionamento “ideológico”, já que um pai teria reclamando que ele havia falado bem do
socialismo - o que, na verdade, eram aulas sobre violência e multiculturalismo.
Outros
casos escolares semelhantes aconteceram nos últimos dias, na mesma forma em que
professores universitários de faculdades privadas me relatam o clima de
opressão de ideias.
Rodrigo
Ghiringhelli de Azevedo, um dos sociólogos mais sérios no Brasil na área de
segurança pública, foi constrangido com a divulgação de uma gravação que foi
feita secretamente por um aluno PUC-RS para provar a “doutrinação marxista” na
universidade.
Valores
liberais clássicos, como direitos humanos, transformaram-se em “doutrinação marxista” no Brasil. Trata-se
de uma mentira que vem ganhando cada vez mais espaço, sendo estimulada por
figuras caricatas e vulgares da direita brasileira que se intitulam liberais,
mas incitam claramente o apedrejamento aos “comunistas”.
Essas
figuras, quando confrontadas com expressões antiliberais e pelo pedido da volta
da ditadura, por exemplo, calam-se e consentem. Afinal, não é o liberalismo que
está em jogo, mas o conservadorismo em sua forma mais retrógrada.
Tudo isso é
movido pela audiência de milhares de pessoas, o que resulta nos trágicos 8% que Jair Bolsonaro emplaca nas pesquisas de intenções de votos nas eleições
presidenciais de 2018. Esse sujeito antiliberal, e anti-liberdade, é o produto
mais bem acabado do ódio promovido pelo liberalismo à brasileira.
Eu fui
professora de Antropologia no ensino superior no Brasil até 2013. A agenda de
qualquer professor de introdução à disciplina é pautada por questões
científicas acerca das diferenças e das similaridades entre seres humanos.
Discutir
poder, gênero, sexualidade e raça – e desconstruir processos de desigualdade –
não são conteúdos marxistas (ainda que possa existir uma versão marxista para
esses assuntos), mas os mais elementares conteúdos para uma reflexão crítica
sobre a nossa humanidade. Relativismo e direitos humanos são temas básicos para
qualquer debate e são frutos de uma tradição iluminista e liberal do Ocidente.
Até 2013,
nós ensinávamos essas questões normalmente em universidades privadas. Sempre
havia um grupo resistente, que vinha com argumentos acerca da “verdade
natural”, que colocava homens brancos e heterossexuais no topo da escala
social.
Nunca foi
fácil trabalhar estes assuntos no Brasil, mas também nunca foi difícil: eu
nunca fui acusada de promover “doutrinação marxista” por debater temas que, na
verdade, dizem respeito à construção simbólica dos seres humanos.
Meu colega
que assumiu minhas disciplinas após 2013, especialmente após os movimentos de
Junho, relata que os alunos começaram a ficar mais corajosos e a acusar os
antropólogos de “comunistas” de forma agressiva e violenta.
Interessante
que o mesmo não ocorre com as pessoas que, ideologicamente, declaram-se
liberais. Estes encontram desafetos e resistência, mas jamais violência e dedo
na cara. Declarar-se a favor do mercado é uma vertente econômica. Doar centenas
de livros de Mises para estudantes é um ato pedagógico. Todavia, ensinar Marx
ou declara-se contra o mercado é uma prática subversiva, diabólica e quase
criminosa. Então, eu me pergunto: onde está mesmo o viés ideológico?
É patético,
mas também irônico, quando se encontra “ideologia” apenas nos grupos de
esquerda. Quando os grupos dominantes usam dos grandes meios de comunicação, do
consumo e de tantas outras formas de repassar a ideologia capitalista e
reproduzir oestablishment, isso é encarado como
neutro.
Crises - Narrativas
não-hegemônicas são essenciais para o pensamento crítico e, consequentemente,
para liberdades individuais e coletivas.
Narrativas
não-hegemônicas são formas de resistência. É a parte fraca da história.
Portanto perseguição "ideológica" é, em si, um ato ideológico, ou
seja, é cultura dominante tentando manter-se hegemônica em num momento em que a
fazer fila no McDonalds já não tem mais apelo algum.
A crise do
capitalismo é um fato do século 21. O projeto democrático só foi permitido no
Brasil enquanto o rol ideológico capitalista sustentava o mito da felicidade.
Mas hoje novas subjetividades – críticas, questionadoras e engajadas - emergem
no país. Novos e antigos movimentos sociais se fortalecem, ao mesmo tempo em
que a “inclusão” via consumo capitalista parece ter ido por água abaixo, acabado
na mais vil forma de endividamento.
A crise é
evidente. Os chamados “precariados” podem ir para qualquer lado na luta ideológica – como pontua
Guy Standing. O que parece existir hoje é uma mentira de ameaça do comunismo
que ganha cada vez mais legitimidade entre os grupos mais vulneráveis. A
dinâmica é perversa. Novamente, criar-se o mito da ameaça vermelha, para, na
verdade, manter o poder do establishment.
A esquerda
que se renova não é mais o cachorro morto dos anos 1990, que não se precisava
nem chutar mais. Hoje é preciso voltar a chutar. É neste momento de profunda
crise das contradições do capitalismo, que se os fortes anunciam golpe, coerção
e violência a fim de se proteger dos demônios comunistas – que só existem em
suas cabeças perversas e corrompidas pelo poder.
Leia mais sobre temas
da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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