Haroldo Lima, no Jornal do Brasil
Nesses
tempos atribulados, inesperadamente a questão de gênero ganha destaque na cena
política brasileira. Os homens que usaram de todos os ardis para tirar do
governo uma mulher, por problemas contábeis, resolveram organizar um governo só
de homens. As brasileiras responderam ao ultraje com altivez.
Há
"explicações" para tudo. Raciocínios empolados demonstram,
supostamente, que o extravagante não o é, e que o grotesco, sob certo ângulo, é
sublime. Mas há fatos que chocam pela contundência e fotos que exibem os fatos
como eles são. Com meras fotos, Sebastião Salgado tornou-se mestre em desvendar
realidades, sem explicações, sem textos, sem teses.
Não
creio que um espírito sagaz, por mais exímio que fosse em projetar ficções,
pudesse imaginar que, aqui no Brasil, seria organizado um governo só de homens
para suceder um dirigido por uma mulher. Mas foi o que aconteceu, por incrível
que pareça. E não foi só. Nenhuma mulher e também nenhum negro, quando o IBGE
informa que, em 2013, 51,4% da população eram de mulheres, e em 2014, 53,6%
eram de negros.
Assim,
o governo transitório e ilegítimo de Themer assumiu, no nascedouro, dois traços
recolhidos do tradicionalismo brasileiro mais atrasado, o machismo e o racismo.
Um Sebastião Salgado em atividade cravou em preto e branco a estampa do
"governo" que emergia: sem uma mulher, sem um negro, com oito
envolvidos na Lava Jato, incluindo o próprio presidente interino, e com quatro
ministros indicados por serem filhos de chefes oligárquicos. Assim constituído,
esse governo, no dia 18 de maio, indicou para seu Líder na Câmara mais um
homem, um deputado réu em três ações no STF, investigado em mais três outros
inquéritos, suspeito de tentativa de assassinato e alvo da Lava Jato. Seria
difícil escolher um conjunto mais harmonioso em suspeição policial,
ancestralidade oligárquica e reacionarismo político.
Desde
que esta espantosa cúpula governamental foi apresentada à Nação, espalhou-se
pelos mais diferentes setores uma natural repulsa. O próprio presidente em
exercício balbuciou uma explicação, dizendo que governo não era só ministério e
que mulheres importantes viriam a compor seu governo, como secretárias de
estado. Emenda pior que o soneto. As mulheres importantes serviam para
"secretárias", não ministras.
Ao
tempo em que o "governo" apresentava seu ministério viril, anunciava
também que extinguira o Ministério da Cultura, o MinC. A complicação
aumentava.
O
ato retrógrado causou perplexidade na população, que viu nisso a imposição de
um novo tipo de cultura, a cultura da alienação e da sujeição, que procurava
afastar a busca por uma cultura para a libertação.
Ocorre
que a repercussão altamente negativa da exclusão das mulheres do ministério
veio a se somar com o protesto pela extinção do MinC. Uma sinergia
crítica potencializada.
Aí
então ocorreu ao novo "governo" uma manobra esperta, para resolver
dois problemas a um só tempo: nomear uma pessoa de prestígio para a Secretaria
Nacional de Cultura, e que fosse uma mulher. Isto pensado, restava procurar o
nome.
O
"governo" mira, em primeiro lugar, uma jornalista famosa,
Marília Gabriela, mas esta se recusa a cumprir o papel. Aborda, em seguida, a
antropóloga cearense Cláudia Leitão, ex- secretaria da Economia Criativa do
MinC. Ouviu, segundo ela, "um sonoro não". Procura, após, uma
coordenadora de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas, Eliane Costa, que
também não aceita. Foi atrás da atriz Bruna Lombardi e depois da rainha do axé baiano,
Daniela Mercury. Nenhuma quis. Era demais. Cinco mulheres disseram não. O
"governo" desistiu. E nomeou mais um homem.
O
fato realça a postura e o papel das mulheres, que não se deixaram enganar pelos
"homens de terno", como disse a Agência Reuters.
O
grupo que, no "governo", está sendo rejeitado, fez um complô de peso.
Não deixou a presidenta Dilma sequer começar seu segundo governo. Tramou
tirá-la logo depois da eleição. Precisava de um pretexto. Como não a
surpreendeu com contas no exterior recheadas de propinas, ou coisas
semelhantes, arranjou um problema contábil e nele se segurou. Seguiu o roteiro
maligno: definia a criminosa, acertava a condenação, e ia atrás do crime, para
mostrar que não houve golpe. A ofensiva da grande mídia, de setores da Justiça,
do Ministério Público e da Polícia Federal tiraram as condições de
governabilidade da presidenta eleita. E a crise se aprofundou.
O
que a direita brasileira fez e está fazendo com Dilma é imperdoável.
Destratam-na publicamente, desrespeitam-na, humilham-na. Provavelmente não
teriam tamanha agressividade se estivessem tratando com um homem. Mas é uma
mulher, e uma mulher com ingredientes inaceitáveis pela elite cultural atrasada
e boçal que está aí a dar as cartas: é de esquerda, não se curvou à ditadura, é
independente, não vive com marido que a "proteja".
A
atitude das cinco mulheres que repeliram o convite do "governo" para
assumirem a Secretaria de Cultura, nos faz meditar. Nós que participamos das
duas décadas da resistência à ditadura, que abandonamos nossas profissões bem
remuneradas e fomos para o mato, para preparar melhor a luta, que curtimos anos
de cadeia, passando por torturas bestiais, que vimos companheiros serem mortos
ao nosso lado, quando vemos agora um gesto tão altaneiro, tão desenvolto, tão soberbo
e tão espontâneo, como o dessas cinco brasileiras, nós seguramos a respiração
para conter a emoção e nos enchemos de orgulho.
Às
vezes homens, desvairados pelo machismo arrogante, e cegos pelos interesses de
classe contrariados, assoberbam-se e resolvem moldar a história segundo sua
vontade. Alucinados, pensam em monopolizar as posições mais visíveis, excluindo
as mulheres, a heterogeneidade, a diversidade, as diferenças. Esta pretensão é
antiga, é muito antiga. Mas inalcançável.
As
monumentais tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes se desenvolvem em
ambiente em que a mulher era um ser subalterno. As tragédias são de
heróis masculinos, mas, a despeito disso, as figuras centrais das tramas
terminam sendo as mulheres, de tal forma que, de todas as tragédias gregas
chegadas incólumes até nós, só uma não possui uma marcante personagem feminina.
A grande maioria dá tanto destaque à mulher que esta é sua personagem central,
e que, inclusive, dá o título das tragédias, Medéia, Antigona, Electra
etc.
Por
onde se vê que é inútil tentar esconder a força, a têmpera, a vontade de quem
as tem, como as mulheres.
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